Por que a solidão precisa ser ressignificada?
Um dia, numa mesa de bar e entre algumas cervejas me
disseram o seguinte: “J., eu tenho medo que você fique sozinha. Você não constrói
relações afetivas duradouras, expulsa a maioria das pessoas da sua vida e se
fecha num casulo só seu. Não pode fazer isso”. E eu venho pensando incessantemente
sobre isso desde então.
Eu gosto de ficar sozinha. Eu sempre gostei de ficar
sozinha, eu sempre gostei muito das pessoas, dos caras, até não gostar mais e
isso ser transformar em algo indiferente pra mim, eu sempre tive poucos amigos
que me pareciam suficientes. Quando eu era mais nova isso não me parecia um
problema – até quando eu comecei a crescer e isso passou a ser sinal de
fracasso, principalmente social. Acredito que é possível ser feliz sozinha/o.
E, de repente, em algum momento de passagem pra vida adulta essa convicção se
transformou primeiro numa dúvida e, logo, numa nova visão de que isso seria
impossível, porque a solidão é sinônimo de fracasso e infelicidade para as
pessoas. O ter pessoas: amigos, família, um companheiro ou companheira para
dividir “planos e sonhos” – isso era fundamental para a felicidade e plenitude.
De novo, eu não acho que essas coisas são dispensáveis – meu problema é com a
ordem das coisas que nos são ensinadas (ou nem são!).
Não é que eu não goste da companhia de outras pessoas, ou
que eu ache impossível se criar relações verdadeiras entre pessoas, que o afeto
não é algo fundamental na vida de alguém – eu acho que nós precisamos de
companhia, que é importante dividir momentos e sentimentos com outras pessoas,
que existem algumas que acabam nos completando em aspectos que nós nunca vamos alcançar,
e que por isso mesmo essas pessoas nos ensinam como viver melhor nesse mundo.
Eu acredito em afeto, em amor. Acredito nas relações e no potencial
(revolucionário!) do amor (e do ódio). Eu não acho que é necessário viver sozinho
só porque é possível - mas eu acredito muito, também, na necessidade do
autoconhecimento.
Eu tenho muitos sonhos quando penso em querer viver numa
sociedade realmente justa, igualitária, onde todas as pessoas possam
desenvolver suas criatividades e seus sentimentos plenamente – mas quando eu
penso nessa sociedade o que mais me deixa animada seria a possibilidade de
desenvolvermos muitos tipos de afetividades e relações possíveis – um amor
livre, mesmo. Enfim, esse é só um sonho, pra mostrar que eu realmente acho que
pessoas importam nas nossas vidas. Mas ai eu pensei: o que mais falta também na
nossa vida, se não nós mesmos?
E eu percebi que nos depararmos com nós mesmos, principalmente
as partes ruins, “polêmicas”, difíceis: nossos defeitos, nossos medos, nossas
angustias, nossas limitações... esse processo de olhar no espelho e dizer: “está
bem, essa sou eu. E agora?” – isso é extremamente doloroso. Chato.
Desconfortável. Conhecer nossas formas de nos entregar às relações, aos amores
e paixões, de lidar com problemas, de enfrentar adversidades, de desenvolver
nossos talentos e aprender cotidianamente – conhecer a nós mesmos (ainda que
sabendo que é possível mudarmos diversas coisas, é possível amadurecermos ou
retrocedermos, é possível aprendermos e desaprendermos durante toda nossa
trajetória), mas mesmo assim, conhecer a nós mesmos – isso é fundamental.
É preciso viver e experimentar a solidão – nos desenvolvendo
nela, aprendendo com ela porque é isso que nos tornará capazes de nos amar e
nos aceitar a ponto de conseguirmos nos entregar a outras pessoas – a ponto de
que em nossas relações possamos dar um pouco de nós, oferecer aquilo que
sabemos e receber, de volta.
E, quando somos obrigados a olhar no espelho, nos
confrontar, como tudo aquilo que doi e incomoda, nós procuramos encontrar
métodos alternativos para evitar, nos enganando muitas vezes.
Descobrimos que
temos outros “problemas” e coisas para lidar e que já nos conhecemos suficiente
bem – e empurramos esse problema com a barriga, desprendendo energia e tempo
para lidar com problemas (superficiais ou inventados) que cobrem o que pode se
tornar um problema real.
Eu fui obrigada, nos últimos tempos, a olhar no espelho.
Algumas vezes no passado também recente, eu passei por ele algumas vezes, vi
alguns reflexos por ai – mas preferi não lidar com isso. Depois, pensei que
tinha resolvido o problema, quando na verdade tinha apenas colocado mais
espelhos pela casa. Assim, resolvi me esconder de todos eles reparando que eu
tenho um problema para me relacionar com homens: e passei a desprender um tempo
gigantesco com uma dedicação enorme para conhecer e me envolver com caras dos
mais vários lugares. Me submeti a situações chatas, cansativas – me envolvi
afetivamente, magoei e fui magoada – conheci várias pessoas, gastei dinheiro a
toa... E simplesmente a água continuava vazando – era como tapar o sol com uma
peneira. Falta alguma coisa.
É, sábio Leminski, “vazio agudo” – e eu, “cheia de tudo”. Nada
preenche. Esse vazio é diferente – é tão dentro de mim, é tão bem escondido – é
um vácuo dentro do peito que eu fui empurrando cada vez mais pra dentro até ser
impossível alcançar – e por algum motivo, alguma coisinha mínima de repente
esse vazio doeu, incomodou. E de repente eu não suporto mais as pessoas, ao
mesmo tempo em que eu procuro incessantemente nelas alguma coisa que eu nem sei
o que – e isso me deixa triste. E me deixa acabada, desgastada - com diversos pedacinhos faltando. Porque eu não queria mesmo sentir tanto assim, tanto assim como eu sinto, as vezes - mas eu sinto... E de repente eu não estava só ignorando diversos problemas reais, como estava ajudando a criar problemas pra mim mesma que nem existiam, me colocando pra baixo - me deixando aos poucos arrastar para o mais fundo...
E de repente eu não sinto vontade nenhuma de
sair da cama, como se o vazio tivesse se expandido no meu peito e começasse a
sair lentamente do meu corpo, vazando por todos os lados, cobrindo a cama, o
quarto, o ar – e imobilizasse tudo. E de repente não existe nenhum propósito,
nenhuma utopia que possa fazer caminhar – não existe sentido. De repente o
existir sentido, algum sentido mesmo que você saiba que é de mentira ou que não
vai durar, mas não existe mais nenhum sentido, e ter sentido é importante. É a
cola, é aquilo que não deixa desmoronar. É a utopia, o que faz caminhar – que torna
a trajetória possível.
Mas você não tem. “E agora, José?”
Eu me senti idiota. Eu me senti e ainda me sinto – porque eu
confesso que é difícil de desviar das ferramentas fáceis – mas eu me senti
assim porque me coloquei em risco, me deixei vulnerável – porque de repente eu
não importo. Não faz diferença. Eu penso: por que eu corro tanto assim? E eu
imagino o por que. Por que ficar até a festa acabar quando você está sentindo que
a festa está ruim, que não está te fazendo bem? E eu me senti mais idiota ainda
pensando se seria possível que fosse diferente pra nós. Se poderíamos começar a
tratar a solidão não como algo, por princípio, ruim.
Ruim é ter esse medo de enfrentar nós mesmos – é chegar a
ter que enfrentar nós mesmos porque sempre achamos desnecessário nos conhecer bem.
Saber experimentar a solidão, aceitar que em alguns momentos nós estamos sim
sozinhos – saber aproveitar nossa própria companhia sem ter problemas com isso,
sem nos sentir idiotas – saber que isso não é um problema. Saber que nenhum
homem no mundo vai ser capaz de cobrir um vazio desse tipo – e que na verdade
nenhum cara do mundo é mais importante do que estar bem consigo mesma, por
exemplo. Que não importa o quanto você queira acreditar nesse tipo de coisa,
para ser amor da vida de alguém é preciso, primeiro, ser amor da sua própria.
Saber olhar no espelho e dizer todos os dias: ok, eu
consigo. Eu sou foda pra caralho. Eu vou fazer isso – e bláblábla de auto ajuda
que a gente conhece. Mas que venha de dentro, e não só de livros de conselhos e
dicas. Que seja protagonizado por nós mesmas – que tenhamos ajuda, porque não,
mas que saibamos que nesse tipo de jornada muitas vezes não vai ter ninguém pra
nos entender. Que saibamos abraçar algumas dores para conseguir transformá-las
em algo construtivo – uma luta a cada dia – no amanhã. Que seja possível que
todos se entreguem e não só as coisas mais superficiais, o medo do amar/do
gostar...
A solidão precisa ser uma fase nossa, do nosso crescimento,
precisa ser pedagógica. E também precisa ser nosso lugar seguro, nossos
momentos que visitamos quando nos deparamos com algum problema. Nosso lugar de
reflexão e elaboração... Precisamos nos permitir aprender com ela, a tê-la não
como uma sombra assustando nossa possível/necessária vida perfeita, mas como
uma das luzes que nos ajuda a enxergar o caminho. E nós precisamos urgente aprender a viver com
nossa solidão, antes que apareçam tantos monstros como os que insistem em
aparecer agora – e nós simplesmente não consigamos lidar com eles, enroscados
nesses medos. Sem reação. Procurando, mais uma vez, os sentidos.