A dificuldade da responsabilidade afetiva X a falácia da raposa do Pequeno Príncipe

Um autor da pedagogia que li há um tempo atrás, no que tocava às questões pedagógicas, apontou que um dos principais problemas dos debates era o entortamento da vara para qualquer um dos extremos. Mais comumente as pessoas traduzem isso da seguinte forma: "fulano é muito 8 ou 80, isso é ruim". A última tradução me parece ser possível vislumbrar no título dessa reflexão.
Como eu acredito que as crises estruturais que vivemos na sociedade afetam também nossas relações amorosas e afetivas, tenho pra mim que vivemo hoje uma intensa crise nas formas de relacionamento. Aquela dificuldade de se comunicar de forma honesta, de ser sincero com quem se relaciona sobre expectativas, buscas e sentimentos. Isso é incrivelmente difícil entre pessoas que estão travando conhecimento, o que é de se esperar. Não deveria ser difícil, no entanto, entre pessoas que já estão numa relação ou já se conhecem mais "profundamente". Mas, como nem todo pensamento "lógico" realmente é verdade, isso também é mentira.
Acho que essa é a responsabilidade afetiva: ser sincero. Saber entender aquela outra pessoa com quem você se relaciona - através da empatia, através de escutar (e perguntar) e esse tipo de coisa. Saber quais são as expectativas dela, etc etc etc. Acho isso o básico das relações humanas, e sinto que essa responsabilidade meio que se perdeu nesse limbo de individualidades e modernidade em que nos encontramos. Não estou, com isso, entortando a vara para o outro lado, o lado da raposinha. Muito pelo contrário.
Em determinado momento do livro do Exupéry o Pequeno Príncipe e a raposa travam um diálogo que ficou sintetizado pela frase: tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Cresci, de certa forma, acreditando que essa frase era a máxima das relações humanas e que isso era totalmente verdade. Como ser adulto é um saco (pra não dizer palavras mais rudes) percebi que essa frase é uma mentira. Nos relacionamentos com infinitas pessoas, algumas das quais caem nas nossas graças: rola uma empatia, uma sintonia, faísca, química, enfim. Há pessoas que por mais que a gente se esforce falta o ingrediente X, e há pessoas que a gente simplesmente não se da bem. Toda essa cartela de variedades de sentimentos e afetos está presente na vida de todo mundo. E claro que nossas ações para com o outro com quem nos relacionamentos tem seu peso, sentido e importância - mas também é do outro a responsabilidade da sinceridade e da criação de ilusões afetivas em torno de determinada relação. Então, concluindo, é responsabilidade de todo mundo!
Como pode uma pessoa X ser responsável por eu ter me apaixonado por ela e projetado nela minhas expectativas e, as vezes, frustrações, entende? Como eu posso ser responsável por uma pessoa simplesmente porque ela se apaixonou por mim? Então, não é tão simples assim esse relacionar-se com responsabilidades e expectativas e frustrações. Falta mediação à raposa, rs.

Dito isso, parto para o meu desabafo principal sobre as relações afetivas. Eu não acredito em monogamia como instituição de uma relação - acho que existem diversas formas de se relacionar e que a monogamia "obrigatória" é uma forma de sofrimento desnecessário. Isso não quer dizer que a relação livre é, automaticamente, mais fácil de praticar ou livre de problemas sociais. E eu tenho a comprovação cabal e empírica de diversos desses problemas, a começar pelo fato de que na teoria é uma coisa, na prática outra.
Meu relacionamento (que era aberto) terminou recentemente, e de certa forma foi uma surpresa pra mim. Não que eu não soubesse que ele tinha problemas (e tinha váááários!) e também não que eu necessariamente quisesse consertá-los a ponto de permanecer na forma namoro - mas o fim dele se consumiu de tal forma que, por algum tempo me questionei se realmente havíamos praticado o famigerado amor livre. O término da relação abalou apenas a minha auto estima, a minha percepção de mim mesma, minha segurança enquanto mulher. E por que? Porque para além dos problemas (que existiam há já algum tempo) a relação terminou a partir do momento em que meu antigo companheiro se apaixonou por outra pessoa! E, curioso que é essa frase, visto que um amor livre pressuporia a possibilidade dessa paixão ser desenvolvida não em detrimento da nossa relação, não é a primeira vez que vejo um homem se utilizar dessa frase como justificativa de um término e, mais que isso, não é a primeira vez que um homem só se sente seguro terminando sua relação peculiar a partir do momento em que se envolve com outra pessoa "mais profundamente".
Por outro lado as mulheres das relações livres - eu, amigas, exemplos, etc - em geral parecem sempre apresentar a preocupação fundamento de uma relação livre: a construção coletiva da relação e do amor. Ué, eu também já me apaixonei profundamente por outra pessoa e, tendo em vista que acreditava cegamente estar sendo "microrevolucionária" em repensar a relação aberta, sempre tive a preocupação em administrar as relações de forma a não afetar ninguém - ou afetar minimamente. No fim, mais uma vez, a pessoa mais machucada da história havia sido eu, mas com o ônus de ter preservado a dita "relação principal" com um companheiro em quem eu confiava e com quem eu planejava (realmente) planos futuros. Bem, claro que pra "terceira" pessoa que chega numa relação aberta a tarefa também não é fácil e requer muita paciência e disposição. Mas, no limite, o que é fácil hoje em dia, né?
Quando tive conhecimento (embora já suspeitasse) que meu antigo companheiro estava apaixonado e, inclusive, ficando com outra pessoa, não fiquei triste ou brava com a pessoa ou com a relação em si. Foi mais a forma como tudo aconteceu: não ter contado antes, ter mentido quando lhe perguntei de alguma outra relação, essa coragem em encerrar nossa relação que só apareceu quando da convicção de que a nova relação poderia ter futuro (há menos de um mês havíamos tido uma conversa sincera onde ele "se comprometeu" a estar comigo em minha mudança, a encarar uma relação à distância, etc). Não fui atrás de fuçar facebook, querer saber detalhes ou mesmo quem era a pessoa - no que me concernia, inclusive, ela poderia ser uma ótima pessoa e fazê-lo feliz (assim como eu imaginava que era comigo) de forma a não me incomodar em nada e, inclusive, pelo contrário. Mas, realidade bate à porta, não foi assim. Foi preciso uma pessoa sair de cena (eu) para que a relação nova se consumasse e pudesse, finalmente, vir a público - talvez um dos fins mais almejados pelos casais modernos. Aí, pra ser sincera, eu me doí um pouco (ou não teria refletido sobre isso), quando vi uma foto de casal com menos de um mês do "nosso" término. Fiquei incomodada, óbvio. E não fiquei incomodada pelo casal em si, porque honestamente desde o fim do "namoro" sinto que foi a decisão mais acertada para todas as partes envolvidas - mas fiquei incomodada por toda essa assimetria do final que envolve uma posição confortável de um lado (dele) e uma auto estima destruída de outro (eu) - porque, sim, eu me senti trocada, substituída, não mais amada/querida e isso afeta, como a gente sabe, diversas esferas da nossa vida em que nós precisamos de nós mesmos: amigos, trabalho, relações novas, etc, etc, etc.
E daí eu pensei: poxa, faltou um pouco de responsabilidade afetiva, né nom? Faltou um pouco de empatia - visto que ainda permanecemos minimamente em contato, eu e ele, na tentativa meio fracassada de mantermos uma relação e na medida em que ele sabia/sabe das minhas vulnerabilidades. Sabe aquela famosa frase que condensa tudo: achei desnecessário. Então, é essa. Ter tato. Não é questão da raposa do pequeno príncipe. O carinho que sinto por ele permanecia, tampouco tinha intenções de reatar um namoro. Mas sabe, essa necessidade de mostrar a felicidade, de aparecer - e que nesses casos vem automaticamente atrelada àquela pessoa que foi trocada, preterida, substituída, sabe? Era isso. Um tato. Um exemplo de "responsabilidade afetiva" - ocultar a foto, não postar, me deletar, sei lá. Qualquer coisa minimamente que demonstrasse a preocupação em não expor uma felicidade às custas da tristeza ou da frustração da outra pessoa - porque eu fiquei, sim, frustrada. Fiquei frustrada com o fim da relação porque, na prática, reproduzimos a lógica do relacionamento fechado, substituímos pessoas, não debatemos conjuntamente.

Não "jogo o bebê com a água do banho", porque aprendi muita coisa tendo uma relação aberta e teria novamente esse formato de relação. Mas fica a pulga atrás da orelha, em formato de desabafo, porque se tem uma coisa que não faz mais sentido é guardar mágoas corrosivas dentro de nós, só porque somos mulheres e "muito sentimentais" (ironia, ok).

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