Eu não sei bem de onde veio, mas eu tinha essa vontade antiga da Chapada dos Veadeiros. É longe, foi mais caro do que eu poderia pagar e precisou de um ventinho soprado a favor, mas a experiência foi absurda. Serena. E não poderia ser em melhor momento que esse. 

Eu acho que, de todas as coisas que sinto vontade de escrever quando vou registrar sobre alguma viagem a que mais me impulsiona é esse desejo de colocar pra fora o que foi a viagem em mim, intimamente - compartilhar as transformações subjetivas, os aprendizados. Por exemplo, perceber que a intensidade de grandes cachoeiras que conheci estava não só na força com que caiam, na água congelante, mas no chamar praquela realidade, ali. As cachoeiras que conheci, Veredas, Salto, Couros, Cristais, Santa Bárbara, Cânyon  inóspitas, me faziam acordar para a realidade e dissipavam em mim diversos pensamentos que, cotidianamente, tendem a se fortalecer e que são pensamentos que se retroalimentam, fazem mal. Os monstros, ali, afugentam-se todos. 

Compartilhei do desejo de conhecer a Chapada com Thiago, e no dia que ele desenhou o mapa da viagem, a mão, e disse: já estou lá, foi o dia em que me convenci que foi uma boa decisão. Acho que, de todas as questões afetivas ali envolvidas, e para além delas, tê-lo como companheiro de viagem, nessa experiência, me resultou (e a ele também) um aprendizado mais rico porque aprendemos a ser mais gente: eu com o espaço, ele com outras gentes; Ele com o espaço, eu com outras gentes. Cada um, a sua maneira, já um pouco calejado de outras rotas, sabia conhecer um pouco mais os limites do outro e os limites dos dois, o momento em que ambos na beiradinha daquele precipício terrível que são algumas brigas, já quase soltos, sabe recuar e tomar um tempo. Aprender a respeitar. Aprender a ver que cada um se relaciona com o espaço e aproveita disso de uma forma. Thiago, por exemplo, estaria sempre na pista, andando o máximo possível. Toda parada de contemplação para ele era também parada de explorar mais e mais e mais o ambiente. As vezes, esquecia de contemplar, e eu chamava pra isso. O contrário, também. Eu, absorta, calma, contemplativa - as vezes dormia, as vezes viajava - estava ali e não estava, porque estar ali proporciona tanto silêncio, tanta beleza... E então lembrava de ir explorar, manoelar. Lembrava de Manoel de Barros todos os dias. Talvez esse fosse um livro bom de se levar na mala de uma viagem dessas. Lagarteei muito em várias pedras.


A Chapada me trouxe algo delicioso. O silêncio. Gosto de não ter que falar, e em diversos momentos sentia oque aquele era um momento para não dizer nada. Olhar, refletir, as vezes escrever algo. Mas não ter com quem falar - com quem se justificar, por exemplo, não ter que dizer algo, apenas por dizer... Estar simplesmente só, isso era maravilhoso. As vezes, Thiago macacoando pela região, eu me sentia mais absolutamente só. Aquela situação toda me agradava porque o silêncio me permitia meditar. Enquanto eu buscava a minha paz, Thiago buscava dele e a gente se respeitava. E as vezes se cruzava ali, ria, comia, compartilhava pensamentos, observava a vida cotidiana acontecer. Estar ali presente, sentindo aquilo, me dedicando às trilhas longas, difíceis, fáceis, cansativas, bonitas, quentes. MUITO quentes, cheias de insetos (ô lugar para ter insetos qu voam, zumbem, e picam! Repelente é obrigatório sempre e sempre, além de protetor solar e, se possível, algo para proteger a cabeça e os olhos). A pequena adrenalina nas ínfimas possibilidades de se perder, pensar na quantidade de água e nos recursos disponíveis. Aprender a se relacionar com o próprio corpo - isso é incrível, Conheci hábitos alimentares que desconhecia, e me entreguei nos mergulhos da forma mais confortável possível. Não dava pra pensar em outra forma - ter corpo e ter controle do próprio corpo é fundamental em viagens - e em escalar pedras e cachoeiras. Numa delas, um Caynon, me vi em cima de uma pedra da qual não me recordava de haver subido, porque não conseguia descer. Tentei de muitos jeitos e o dia já estava baixando, era nosso segundo dia de viagem. 

Thiago me incentivou muito no início, pulou e mostrou como era, se ofereceu para ser escada humana e me encorajou verbalmente, mas diante do medo congelante e da impossibilidade de me fazer pular, se irritou. Quando ele desistiu de sair dali e continuou andando, usou o último recurso da aprendizagem disponível a alguém: eu vou então, fica aí sozinha. Até parece, pensei. As vezes funcionamos na ameaça. Adorei que ele tenha saído, a impaciência dele me atrapalhou muito, e o silêncio - exceto pela cachoeira rolando incansável - me fez enfrentar a situação. Estava mesmo paralisada, abocanhada pelo medo. Tentava pular e voltava para trás, inconformada com a fragilidade em que me encontrava, onde parecia que quanto mais eu tentava, menos eu conseguia! Pulei e percebi o tamanho da ilusão (aterrorizante) na qual estava metida. As vezes, acontece. As cachoeiras e trilhas mostram pra gente que a desatenção, os cálculos imprecisos e, mais do que tudo, a falta de assumir uma postura ativa na própria vida fazem a gente cair em ilusões - das várias.

Viagens assim também demandam de nós a disposição em estar 100% de corpo e alma presente naquilo. Levei dois livros, não li nenhum. Levei um caderno de campo, fiz várias anotações. Estava disposta a registrar aquilo, deixar me formar por. Me ausentei quase 100% do celular e do mundo virtual, dos conhecidos, dos emails, do trabalho, da realidade política e social. As vezes me sentia alienada, as vezes me sentia impulsionada a viver a vida daquele jeito ali. No interior, numa realidade que mesmo sendo a mesma, e sentida também pelos mesmos problemas, ainda assim era diferente. Conhecer o lugar - e conhecer geograficamente. Vivê-lo. Aprender a transitar por ali. Conhecer outra parte daquilo que importa: a terra. Era essa a coisa toda que movia esse sonho: estar de corpo, alma e mente presente em algo para além do que é ser pessoa - composta por pessoas. E sim pessoa composta pelo espaço. Ao redor. Foi tão importante que a companhia que levei comigo - e que me levou com ela, rs - tenha sido alguém que tanto incentiva esse tipo de conhecimento de mundo que eu estava buscando.  Vimos a lua cheia por duas noites, numa delas perseguimos a dita cuja, procurando o melhor lugar para admirá-la, gigante e amarela imponente no céu. Num dos dias, estacionado o carro numa esquina numa rua de terra, subimos no carro para ver a lua e conversar. Quando nos demos conta, estávamos na rua do Camping. Incrível! rs 

Em Cavalcante ficamos no Camping e Hostel Cavalcante, de um casal simpático pais de um bebê lindo. Fomos absurdamente bem recebidos, e o valor da diária é justo. O lugar é super acolhedor e em dois dias de estadia já me sentia em casa. Depois, em Alto Paraíso, encontramos na rua principal de chegada na cidade, escrito numa placa a mão: camping aqui. Água quente. Cozinha. Wi-Fi. Estacionamento. A casa, de uma família, tinha um terreno grande, e ficamos os três dias restantes ali. Demos sorte que em ambos os lugares conseguiram uma barraca e colchão para nós, pois não habíamos levado. Essa é a melhor e mais barata forma de se hospedar lá: camping. Tem muito lugar como hostel, hotel, pousada, mas em geral são bem mais caros. Alguns hostels trocam hospedagem por trampo, principalmente em alta temporada. 

Fazer trilhas, andar estradas (de carro, e as vezes desejando estar de bicicleta. E as vezes não, rs) se molhar, se sujar, ficar fedido, se adaptar às condições adversas, se envolver. Saber conhecer o relevo, a vegetação, o clima, o solo, a fauna, a flora, a água, o céu, os insetos. Contrastar com o que a gente já sabe, se questionar. Para que serve isso? Dar cara aos conhecimentos abstratos. Lembrar, por exemplo, de como aprendemos sobre a geografia brasileira na escola. O que é o cerrado? O que é o centro oeste? A Chapada, localizada em cima da maior pedra de quartzo rosa do mundo (segundo informações locais que não fui atras de confirmar!) aquela vegetação absurda. Cachoeiras escondidas em vales entre montanhas secas, ardendo de sol. Cachoeiras verdadeiros oásis no meio de um monte de pedra - cinza, marrom, retas, arredondadas, com vegetação, sem, com sombra, sem sombra. Ca-ra-lho! Só lugar absurdo de bonito. Subir umas alturas que você desacredita, morro adentro, mata adentro. Descer, sem fim. Sentir mudar a estrada: terra branca, terra vermelha. Um chão, de uma das trilhas, que de tanto cristal parecia vidro! O lugar é inacreditável. A formação rochosa e a vegetação, vista da estrada com o sol nascendo, vista com sol se pondo ou já pro outro lado, com as estrelas pintando o céu cedo-azul (aquele que antecede o pano preto de estrelas brancas) é muito bonita: mares de morros, morros gigantes e, então, grandes planícies, vales. Amontoados de árvores. Tucano voando, arara voando. Uma cacetada de flor bonita e as cores predominantes: verdes - de todos os tons! roxo e branco. 

Dependemos bastante de ter um carro lá, porque os lugares são longes. Conhecer muitos em poucos dias, porque sobrou taaaaaaaaanta coisa para uma próxima vez, demanda ter um carro e combustível, que estava na fase crise aguda da história brasileira. É claro que é possível contar com caronas, a galera vai bastante de carro e os carros são grandes, mas isso diminui um pouco a autonomia da viagem também. A gente ia parando e isso era muito bom. Foi assim que achamos o paralelo 14, por exemplo, a tal linha que chega em Macchu Picchu, no Peru, com quem a Chapada tem algumas semelhanças - pelo menos a olho nu. Passando na estrada de Cavalcante, primeira cidade que fomos, até Alto Paraíso, passamos pelo paralelo e por pouco não paramos. Aquelas estradas absurdas do interior de Goiás, imaginam? Grandes retas no meio de grandes nada - muitas áreas de preservação, muitas areas de monocultura ou então de pasto. Acostamento curto de asfalto, e já o desnível da terra/mato.Faixa simples, pista estreita. Dirigindo, vi a placa. Paramos, voltamos - total estilo livre. Descemos, vimos o cenário, tiramos fotos. Passei a gostar mais do hábito de tirar fotos dos lugares - em geral sou da ideia de que as fotografias, as melhores pelo menos, tiramos com os olhos. Mas a importância da foto apareceu para mim de outras formas: registrar também como eu estava me sentindo naquele momento - como via o lugar, o que chamava mais atenção e como eu estava. 

Ver o Paralelo me deixou feliz. Conhecer os Canyons também. Terminar as trilhas que fizemos no Parque Nacional me deixou maravilhada, com sentimento de desafio vencido. Vou explicar esse: a entrada do Parque fica num vilarejo, ainda de Alto Paraiso, mas chamado São Jorge. Fica a uns 32 km de Alto, na estrada que costeia todo o parque. Ali no caminho fica o vale da Lua e outras coisas mais, além do absurdo da paisagem - indescritível. O Parque abre as 08h00 e permite que você entre até as 12h. O horário de saída é as 17h30. Tem 4 trilhas possíveis, uma delas de 20 e poucos km ida/volta precisa de guia, as outras são auto guiáveis. Fizemos duas: a do Salto (cachoeira que é vista do Mirante da Janela, no qual não se chega por essa entrada do parque) e Corredeiras e os Canyons. O total foi uns 20 km ida e volta - de trilhas puxadas. Duvidaram de nós na entrada, e eu também duvidei em alguns trechos, principalmente quando a água acabou. Aliás, levem sempre MUITA água. Pesa um pouco, mas é muito necessário. E glicose, claro. Frutas e barras de cereal. Quando chegamos no final do dia à portaria, de volta, senti que tinha vivido uma experiência incrível: de andar e explorar uma reserva nacional, me sentindo bem comigo mesma, em harmonia com meu companheiro de viagem. Em épocas de feriado/férias é preciso chegar cedo no parque, pois há lotação máxima. 

A experiência maior era com o espaço - o lugar. Mas a(s) pessoa(s) que escolhemos compartilhar da viagem, além daquelas que conhecemos no caminho, também fazem as experiências da viagem. Aprendemos muito sobre o Outro em momentos de "exceção" do cotidiano, e aprendemos muito sobre nós mesmos também, ao lidarmos com o Outro. Bem, isso serve para construir relações afetivas, e viagens assim colocam/tiram essas construções nos trilhos. Nos fortalece, nos mostra as rachaduras, aquilo que precisa ser melhor construído para ambos. As decisões e conflitos afetivos influenciam diretamente na viagem, e isso pode ser bom ou ruim. Entregues às experiências da viagem, tivemos poucos conflitos negativos. Alguns momentos em que foi necessário relevar uma ofensa, um desafeto, um contragosto. E outros em que foi necessário se posicionar e isso me (pois falo de mim) fortaleceu para mim mesma, inclusive, mostrando o que posso e não posso, o que consigo e o que preciso melhorar, o que estou certa e onde eu errei. 

Visitei alguns limites. Visitei alguns oásis brasileiros. Visitei geografia, geologia, biologia e coisas tantas que eu não sei mais. Estive num dos lugares mais bonitos que já vi - pessoalmente e por foto - e pensei o quão maravilhoso foi isso. 



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