Sobre relacionamentos abusivos e amor como dominação

Então tá. Que a gente vai aprendendo que muitas vezes é nas sutilezas que o machismo prolifera, isso todo mundo já sabe. Parece que o fato de ser nos mínimos detalhes torna muito mais fácil que a gente se deixe levar e dominar, enquanto ele vai deslizando e tomando conta, silenciosamente, das mais profundas entranhas: domina sua subjetividade e torna a relação, muitas vezes uma forma de prisão – muitas vezes sem grades. Um lugar do qual você não pode sair, uma força que te arrasta, te puxa pra baixo.
Muito difícil definir se aquele relacionamento é abusivo ou não. A todo momento em que eu narrava minha histórias, os fatos e o que eu sentia, eu internamente me questionava se estava exagerando, se por um caso aquilo não era algo da minha cabeça ou se, em alguma medida, eu mesma não tinha me causado aquela situação. O processo de desconstrução é tão lento – a gente só vai conseguindo atribuir sentidos às experiências na medida em que, além de tê-las vivido, tomamos o distanciamento e nos propomos a pensar sobre aquilo porque, se não, passa batido. Vira só mais uma história que não deu certo ou foi ruim – meros dissabores da vida.
Mas se tem uma coisa que eu aprendi é que, quando se trata de uma relação amorosa-afetiva, ou mesmo quando não é uma relação mas um envolvimento afetivo entre um homem e uma mulher, os pormenores do machismo estão ali. Não são meros dissabores da vida – o machismo não pode ser encarado como um mero dissabor da vida. Leva tempo para conseguir parar e olhar com lucidez para um carrossel depois que a gente desce dele, onde há um segundo atrás você estava girando incessantemente, tão absorta naquilo.  Leva um tempo para perceber que, de repente, você não gostou de andar naquele carrossel.
Pois bem. Eu tive um envolvimento abusivo. Eu percebi que o cara era furada, um típico manipulador. Você não percebe quanto está ali. Vai fazendo, falando, se relacionando, achando tudo mais ou menos normal ou até mais ou menos fofo – “se pá ele gosta de mim”, como que romantizando a situação. “Ele se preocupada comigo”. Mas é mentira. A violência psicológica é tão sutil, é aquele ato de passar a linha no buraco minúsculo da agulha. É aquela pulga que tá fazendo seu gato se coçar incessantemente e que não pode ser pega. A manipulação psicológica, o jogo de dominação – o cara que é uma eterna vítima e se apresenta assim pra você: como eu, um cara preocupado com o mundo, de esquerda... Como eu? Como logo eu? As pessoas me perseguem, esse é o problema – ninguém me entende, você precisa me entender. Eu te entendo.
Quando você percebe já está orbitando em torno dele. Quando percebe, tem intimidades invadidas, das formas mais sutis. Rola chantagem emocional, aquele joguinho. Não vou entrar em detalhes – o machismo é sutil e metamórfico e os homens sabem jogar muito bem com ele. E como é difícil sair. E tem o medo. Medo de que? Ué, o medo da violência se alargar, o medo de mais chantagem, o medo de ser exposta. O cara que, carregando nas costas a mala gigantesca de acusações e erros, que diz ter a consciência da podridão machista da sociedade e que, no fim das contas, vai TER CERTEZA que estava certo, vai querer sair por cima. Vai se achar no direito de te acusar de ser “pragmática” e dizer que está cortando relações com você. Pois é. Depois da coragem que envolve tentar sair de um relacionamento abusivo, voa uma corda e se amarra no seu pescoço meio que te dificultando a saída. Encerrar aquilo.
Aliás, esse é um fator curioso. Fica tão subentendido que a vida (e o corpo) das mulheres pertencem à deliberações públicas e, consequentemente, pertencem também a eles que, tão naturalmente e de forma constante invadem nosso espaço. A mulher pertence ao homem de todos os jeitos possíveis: passando a mão, te estuprando, the chantageando, agredindo como um saco de pancadas, segurando em você, te mandando mensagem 11:00 da noite perguntando detalhes da sua vida que você NUNCA deu a MENOR abertura para serem perguntados ou te enviando mensagens insistentemente todos os dias, todas as horas. Está tão colocado para eles que você PRECISA estar disponível para eles – à disposição e sendo simpática, legal, receptiva... e quando você encontra uma solução que não é uma solução, de fato, mas alivia a situação e resolve bloquear a pessoa, se ela descobre ela se sente no direito de tirar satisfação com você, te acusando, ao invés de colocar a mão na consciência e problematizar POR QUE RAIOS ALGUÉM PRECISOU BLOQUEAR VOCÊ?Caramba. Que doideira.
Aqui, pra nós. Quando o sexo é relação e quando o sexo é o cara te consumindo? Quando as pessoas ao seu redor estão te respeitando por aquilo que você se propõe a construir e fazer – politicamente ou no trabalho? Ou quando eles estão te olhando insistentemente te reduzindo ao objeto a ser conquistado, dominado? Quando você está conversando com um homem e ele está realmente escutando o que você está dizendo? Quando, por fim, você é um sujeito?
Desde que eu entrei no mundo da pesquisa acadêmica, desde que eu tive envolvimentos com caras que foram machistas comigo eu consigo contar nos dedos de uma mão as vezes que eles me pediram desculpas por constrangimentos e situações que me fizeram passar e me desagradaram. Desde que eu me propus a percorrer o caminho da pesquisa e ao mesmo tempo o caminho de ativista política feminista eu preciso me colocar diariamente diante de situações que me desgastam, preciso refletir sobre falas e atos e enfrentar o desafio de abrir o problema para o homem dizendo “não gosto disso”, correndo o risco de ser ridicularizada (ouvir um “kkkkk”) ou questionada sobre minha sanidade mental/social (você está me cobrando, você está imaginando coisas). E, mesmo depois do desgaste das brigas que você escolhe comprar (porque tem aquelas que você simplesmente deixa pra lá) você dificilmente vai ouvir um pedido de desculpa. E, bom, além de tudo há duas formas de se pedir desculpa: aquela que limpa a consciência imediata do cara, para ele; e aquela que, DE FATO, se propõe a refletir sobre o que aconteceu. Qualquer um pode imaginar quantos dedos eu consigo contar de um pedido de desculpa de fato.
Nossa. Que força. Que força as mulheres precisam ter para combater os machismos pequenininhos. Os machismos nos detalhes. Que força e autocentrismo são necessárias para não sucumbirmos à tentação de nos aceitarmos loucas, noiadas, erradas e sairmos nós pedindo desculpas. Imagina: Querido, desculpa por isso, você foi vítima, você é maravilhoso, eu errei. Pode invadir meu espaço, pode perguntar o que você quiser, pode pegar no meu cabelo, me mandar fotos, me elogiar infinitamente em qualquer momento do meu dia, pode me convidar pra sair com você, eu vou sair com você sempre que você quiser, eu vou te dar satisfações, eu vou conversar com você sempre que você quiser, eu vou te responder tudo que você quiser. Pode enfiar seu pau em mim, onde você quiser, pode me acariciar, pode ficar me encarando, pode me stalkear. Me desculpa se eu dei a entender que não. Afinal, eu estou aqui pra servir você.

Quer dizer, já pensou? Será que é isso mesmo que eles estão esperando? Medo e saco cheio desse mundo invertido. No fim fica para nós refletir tão profundamente sobre as relações afetivas amorosas. Levantando a preocupação – enquanto eles vão vivendo o seu modelo de relação. Conveniente, adequado.   

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