Polêmica: onde vamos com o feminismo só das "mana"?

Esses dias eu pensei numa coisa, que vou tentar traduzir da forma política mais saudável possível, porque é dessas pulgas atrás da orelha que não quer ir embora, e achei melhor não ignorar.

O que me motivou esse pensamento foi a absurda tragédia que envolveu uma jovem chamada Lucía, na Argentina. O movimento feminista de diversos países, composto por diversos grupos diferentes, conseguiu organizar uma mobilização grande para manifestar a angústia que sentimos todos os dias, e nesse momento em particular, com a morte de Lucía. Mas, em meio a isso, surgiram algumas polêmicas envolvendo homens no protesto, esquerdomachos, o nome da campanha, etc, etc, etc. Não que polêmicas não sejam saudáveis, elas são. Mas me fez pensar no feminismo que anda a ganhar espaço ultimamente: É um feminismo que em discurso preza por agregar as mulheres (cortadas por diferentes opressões e, portanto que envolva as diferentes interseccionalidades) - mas que não permite "homem feminista". Que "protege" as manas, mas que não  permite que homem "dê pitaco em luta que não é sua" ou que não permite que "homem fale" - em hipótese alguma.

Ok. Há algum tempo atrás nós estávamos discutindo que protagonismo era importante e que a questão de "roubar" protagonismo era problemática porque pessoas que não sentiam/viviam determinada opressão não poderiam falar sobre seus efeitos subjetivos. Principalmente porque isso poderia muitas vezes invisibilizar mais uma vez a luta dos oprimidos PROTAGONIZADA por eles (apoiada e levada a cabo pelos demais). Também defendíamos a existência de espaços de auto organização, no sentido de pensar a superação de traumas e o fortalecimento entre mulheres que já foram duramente oprimidas e se enfraqueceram, a fim de que elas pudessem se empoderar mirando um ativismo libertador - para elas e para todas as suas companheiras (e companheiros) de luta. Eu ainda tenho acordo com ambas as necessidades. Não acho que homens podem dizer como as mulheres são oprimidas pelo machismo, e nem o que elas SENTEM. E também não acho que superamos o problema do protagonismo e do empoderamento. Mas acho que entortamos demais a vara.

Fiquei pensando o que é o feminismo, e para quem nos dirigimos. Sei que não existe UM feminismo como A verdade, então resolvi me pautar pelo que eu acredito ser o feminismo (ainda que algumas linhas gerais me pareçam perpassar todos eles). Pensei isso porque na minha concepção o feminismo não é a única pauta política em torno da qual eu desejo me organizar e me mobilizar, embora eu o ache indispensável. Eu acho que o feminismo sozinho, inclusive, não da conta de responder os problemas sociais que vivemos hoje. E aí, também acho que caímos num lugar perigoso onde, ao não permitir que homens falem apenas por serem homens, acabamos por afastá-los do que poderia ser o feminismo para eles também - porque, para mim, feminismo é sobre homens também. É dificil desenvolver a ideia sem parecer que é uma discussão de responsabilidade apenas e, embora passe por isso, não é a ideia central.

Pensei muito sobre a morte de Lucía. Sobre a normal ida até um  local para comprar alguma coisa, qualquer coisa. Sobre Lucía, uma mulher, chegar neste local e ser abordada por três homens que, por algum ou alguns motivos, entenderem que Lucía estava ali ocupando uma posição de submissão a eles e que, portanto, deveria fazer o que eles quisessem que ela fizesse. Pensei também em porque raios eles queriam que ela ficasse drogada e transasse com eles, mesmo que ela não quisesse transar. Pensei em porque eles a estuprariam de diversas formas até que ela morresse. Pensei, ainda, porque esse tipo de violência é tão, tão, tão normal. Conclui, bem pessimista, que de fato existe um abismo entre as ideias do ser homem e  ser mulher, um abismo que puxa para a morte violenta, com a força e o peso do machismo, milhares de mulheres diariamente.

As mulheres feministas lutam diariamente contra um problema de opressão que é material, estrutural. Se materializa na morte de Lucía, na desigualdade de salários, nas jornadas triplas de trabalho, nos abortos clandestinos que resultam em morte, no tráfico sexual, e a lista continua. Cotidianamente se materializa nas cantadas, no sexo sem consentimento, na chantagem emocional e psicológica, e continua mais uma vez. Ela não se materializa apenas nos homens que estão andando na rua e são desconhecidos, nos crushs e pretendentes, nos nossos amigos e companheiros homens, embora se materialize também. A luta diária contra o machismo é tremenda, gigantesca - está nas nossas relações cotidianas e também num inimigo que parece que nos escapa, de tão grande. Ela envolve o outro lado: a luta contra os vários tipos de privilégios existentes no mundo - que demanda que pessoas em posição de privilégio possam e queiram assumir uma postura crítica de rever sua posição de privilégio, abrir mão dele e lutar por destruí-los, o que é ainda mais difícil, principalmente para quem é privilegiado.

Acho que o problema é que quando geramos um feminismo que expulsa de suas reflexões, debates e formulações o sujeito social direto que produz e materializa a opressão - isto é, o homem - acabamos por de forma inconsciente empurrá-lo ao seu lugar de privilégio, reforçando-o. Não dar pitaco em opressão que não sofre se converteu em uma frase que na prática simplesmente não permite sequer que os homens aproximem-se do que está sendo discutido ali, como se isso não lhes dissesse respeito. Isso faz com que eles comecem a nem mais entender o que está sendo feito ou debatido e daí pra assumir a posição novamente de conforto é muito mais rápido e mais eficiente pra eles. Mas não sei, eu achava que feminismo também era sobre o "ser homem", sobre rever privilégios, sobre ser auto crítico, sobre entender - E ENTENDENDO as dores do machismo, embora nunca vá senti-las, poder verdadeiramente estar disposto a lutar contra ele sem precisar ser uma manA.

Como será possível, nesse feminismo "lacrador", gerar empatia pela luta que as mulheres conduzem diariamente? Como é possível abandonar a eterna posição de "fiscal", de ter que ficar cobrando de amigos, companheiros, maridos, parentes as suas posturas machistas se estes não conseguem desenvolver a noção de alteridade suficiente para entender que a luta também é deles? Que as consequências também os afetam? Eu penso que a ideia de lugar de fala abriu precedentes para que, no feminismo, homens não assumam lugar nenhum e, as vezes, assumam o lugar de essencialmente antagônicos. E ai me surge a dúvida: sem assumir um lugar onde se reconheça como sujeito responsável pela transformação das ideias machistas e por questionar e romper com seus próprios privilégios, como é que será possível destruir o machismo e acabar com essa opressão?

Ou, talvez, o pano de fundo que estamos discutindo é de um movimento que tem como noção básica o fato de que mulheres e homens são necessariamente inimigos, por materializarem e atuarem na opressão de formas antagônicas, formando, assim, dois grandes grupos que se chocam, homensXmulheres? Se essa é a conclusão, então é uma questão muito mais profunda de concepção política: somos uma classe? A luta feminista é a luta total pela emancipação da sociedade? Acho que, pensando nessas perguntas talvez fique mais visível entender qual é a pulga aqui.

Eu não sou contra métodos de escracho. Acredito sim que existam muitos esquerdomachos por aí e as vezes tenho vontade que todos os homens do mundo se explodam, porque é uma luta cotidiana tão difícil e exaustiva que tem dias que a melhor palavra de ordem é "cortar picas" e o mais engraçado é rir das "males tears". Mas essa não é a resposta política para o problema. Não acho que meus inimigos sejam os homens, ainda que as vezes eles materializem a opressão que eu mais sinto e que tanto destrói e aniquila mulheres. Eu gostaria que fossemos capazes de criar mecanismos que aproximassem os homens, que tornasse mais fácil continuar lutando e sobrevivendo depois de casos como o da Lucía. Que tornasse cada vez mais raro essas situações que permitem que por alguns motivos três homens se sintam no direito de estuprar e matar uma mulher - porque eles são homens e ela, mulher. E eu acho que isso é responsabilidade do movimento feminista - e dos homens também.

Acho que, junto com esse lugar de fala perdemos a noção de empoderamento. Esquecemos que empoderamento é fortalecer mulheres enquanto sujeito político que tem ideias, opiniões. Que trabalham, que são fortes, que constroem, que cuidam, que criam, que inventam, que dirigem, que cozinham, que fazem tudo que homens fazem, ainda que tenham aprendido que não era bem assim. Acho que perdemos o empoderamento quando o fortalecimento fica só entre "manas". Quando o movimento não fortalece mulheres para que elas se vejam como sujeitos políticos e ocupem seu lugar na construção da sociedade - ou de um projeto alternativo de sociedade. Quando se perde a ideia de que "ok, você vai gritar comigo porque acha que sendo homem vai me intimidar no berro, então eu vou gritar com você também, porque isso não é sobre gritar ou não gritar, é sobre outra coisa" (citando uma discussão que a Rosa Luxemburgo teve em um congresso do partido socialista alemão).

Não acho que todos os movimentos sejam assim, mas acho que existe uma tendência dentro do feminismo em, baseado no ódio e repulsa (legítimos, não nego) que sentem em relação aos homens, por conta de experiências particulares e coletivas, simplesmente expulsar de qualquer espaço feminista homens que poderiam ser aliados, que querem ser aliados e que devem ser aliados. Porque eu não acho que feminismo é sobre uma guerra entre os sexos ou algo assim - essa já está colocada na sociedade machista, onde mulheres morrem porque são mulheres. E o feminismo não é o oposto do machismo, pelo menos eu não acho que seja.


Então, eu penso. Do ponto de vista prático e de transformação: onde esse feminismo está nos levando?

Postagens mais visitadas deste blog

"Fica bem", "Se cuida" e "tenha uma boa vida" e o significa real do "não se envolver".

Sociologia do amor: a quase-simetria possível na sinceridade

Carta de repúdio às canções da atlética da medicina da PUCCAMP.