Sobre tanta falta

Não há absolutamente nada que eu escreva aqui ou que eu pense que fará mais sentido depois de escrito, que vá conseguir expressar o que eu estou sentindo nesse momento. Talvez a ilustração mais plausível seja a metáfora que diz que o coração foi dilacerado. Eu acho que se eu pudesse explicar esse sentimento a alguém diria, com certeza, que meu coração foi dilacerado. Esmagado pela mão de um gigante.

Esse não é um texto sobre a morte. Não tenho nenhuma competência pra falar disso. Nem sobre a vida. Queria que fosse alguma coisa que ajudasse a lidar com a ausência que a morte proporciona. Pensei que queria poder dizer sobre o que vem depois do dilacerar - o vazio que fica. (Vazio agudo).

Em casa, perdemos um amor felino. Um companheiro cheio de personalidade, o Pablo. Viajei terça, a última vez que eu o vi. Eu disse que voltaria sexta, mas por um relaxamento de agenda, resolvi voltar sábado. Descobri de manhã que ele havia sido atropelado. Sabe, pensei muito nisso. Em quanto não faz sentido que uma coisa tão absurda dessas tenha acontecido. Pablo atravessava as ruas com frequência, sabia olhar... Essas coisas todas. Aí então fico tentando imaginar como aconteceu... Não vimos ele depois. Algumas meninas viram o acidente e o levaram para enterrar, supostamente. Não pude olhar concretamente pro Pablo, nem pensar como fazer um ritual felino digno do amor que sentíamos por ele.

Concluí que o ritual de despedida do corpo é importante: poder olhar para algo que era tão alguém pra você e ver que realmente ele foi embora. Eu fico com uma pequena sensaçãozinha de que se eu chamar mais uma vez ele vai aparecer correndo na janela com aquele miado engraçado. Vai subir em cima da mesa ronronando, me dar um cheiro e se aninhar no meu colo enquanto eu escrevo um mestrado todo problemático. Fico achando que vou continuar tendo uma das melhores companhias para aliviar as dores do mundo.

Sério, o amor felino é incrível. Entendo totalmente as "tias dos gatos" - acho que é caso de felicidade genuína mesmo. Era isso que sentia com o Pabli, felicidade genuína. Como acalentava o coração o fato, concreto, de que na nossa relação ele gostava de mim e eu dele e que a gente vivia bem. Ponto. Que ele era tão bonitinho e comilão e dorminhoco e brincalhão e pentelho. Que ele miava fofo quando a gente dava uma de Felicia extrema pra cima dele. Que a Cora se irritava com ele mas vivia procurando e que o Inácio era o parzinho canino dele. Que ele tinha o belo macio e o nariz rosinha. Que a patinha dele tão pequenina e já tão grande... Que ele deve ter sentido dor e a gente nem estava ali pra tentar ajudar ele e dar um pouco de carinho, já que ele fazia isso com a gente sempre... Que, nossa, dói muito essa ausência, ausência repentina. A sensação de que aquelas situações e momentos que eram tão cotidianos e tão bons, de repente não vão nunca mais acontecer. Acho que essa é uma das percepções mais cruéis do que são as consequências da morte, para quem fica: a ausência que ela cria - o vácuo das nossas relações que eram algo e de repente não ultrapassarão de ser lembrança. Saramago falou: a morte é a diferença entre ter estado e já não estar mais. Ca-ra-lho, é tão isso. O não estar mais.

Mas esse não é um texto sobre a morte. Nem um texto sobre a saudade, os tipos de saudade, a ausência de saudade, o esquecimento total... Não seria possível ultrapassar esse momento aqui. Eu tive poucas experiências de vida que envolviam a trágica ausência das pessoas no nosso cotidiano, por conta da morte - no sentido de que tive pessoas que saíram da minha vida repentinamente porque foram privadas das delas próprias. Pessoas, animais, enfim, afetos. A ausência embutida na morte nunca me havia sido uma grande questão - o medo maior, é verdade, era eu mesma morrer. Mas isso é outra coisa. Minhas ausências sempre foram rupturas escolhidas por ambos os lados em que deixamos de estar de tantas outras formas, as vezes querendo e as vezes não.

 Quando Edmundo morreu a dor foi grande, mas de certa forma eu estava mais preparada para aquilo - dessas histórias que o tempo passado no hospital nos transforma algumas coisas. Sábado experienciei aquela morte completamente inesperada. Aquelas rupturas bruscas da vida,  ilógicas, absurdas, quando a única coisa que conseguimos repetir para nós mesmas é: não pode ser verdade. Senti o esmagamento repentino e horroroso do peito. Não entendia da onde vinha tanta dor, mas ela me transbordava no peito. Pensei: não é possível. Não existe no mundo algo que justifique essa dor. Sinto vontade de chorar constantemente, principalmente se alguém fala sobre isso. Não consigo conceber o fato de abrir a porta e não ter dois gatos me esperando. Acho insuportável pensar na impossibilidade de afagar e abraçar o Pablo. É horrível. É como se a leveza que ele trazia tivesse sido levada toda embora e substituída por um ar de ausência, que pesa. O coração, de carne, sangra várias vezes por dia, um pouquinho, quando as   lembranças insistem em ocorrer, acompanhadas da frustração e nó na garganta em saber que essas, de fato, serão só lembranças - porque Pablo deixou de estar aqui.

As pessoas -e os animais, não são substituíveis. Embora queiram nos insistir que são. Nos empurrem e acelerem o tempo pra isso. Nos entupa de trabalhos, compromissos. Nos isole em nós mesmos. Aprendemos a viver felicidade em pequenos momentos, pequenos prazeres, íntimos amigos. Então, é por isso. Dói. Não estar aqui dói. Não poder viver momentos de novo. Não querer esquecer ou se habituar com a falta, achando que isso nos desumaniza, mas no fundo sabendo que o que nos desumaniza são tantas outras coisas e que habituar-se ao fato de que a morte e o não estar aqui não pode impossibilitar o que está aqui e vida? Bem isso.

Me sinto culpada. Penso que deve ser normal se sentir culpado, pensar nos "se" que pudessem ter evitado que Pablo estivesse onde estivesse na hora que estivesse e, portanto, ter acontecido o que aconteceu. Quase enlouquecemos tentando achar-nos culpados. Às vezes não se aplica. A todo momento me surge uma nova pista que, por alguns segundos, alivia a angústia da culpa em saber "onde se errou" para daí eu pensar: nada disso trará Pablo de volta. Fim. da. História.

Acho que essa é também a frustração maior: o fato de que nada que você pense ou entenda que explique aquela morte será confortável o suficiente como trazer de volta a pessoa (ou gato) amado. Então, no fim, a dor mesmo está enraizada exatamente aqui - não lá. Pablo deve mesmo estar no mundo dos gatos, rei soberano, do lado do Élvis e de todos os gatos e almas maravilhosas que passaram por esse mundo. Ou, Pablo vai se decompor, virar bactéria, evaporar no ar, virar pó de estrela, etc, etc, - nada morre, tudo se transforma, o ciclo da vida. Tudo, absolutamente tudo que reconforte a ideia de que Pablo saiu daqui para uma melhor  em geral eu não desprezo. Abraço todas as idéias. Sempre tento buscar uma relação saudável com a morte, naturalizá-la.. Mas, no fundo, aquela vozinha angustiada da saudade suspira: ele poderia ter esperado um pouco mais.

 Me sinto meio amortecida. Falo disso, mas tento me colocar numa posição "fria", do tipo: eu superei. Era só um gato. Vida que segue. Por dentro não é assim, a gente sabe. Vamos recompondo o cotidiano, sem uma parte da sua composição, enquanto vamos recolhendo os nossos próprios pedaços. Nossas culpas inventadas, nossos nós na garganta. Destorcendo o coração, massageando-o devagarinho... Aprendendo a lidar, dia pós dia. Acrescentaria que a morte é isso: aprender a lidar, Uma vida inteira para aprender a lidar.

Não tenho dúvidas que essa sensação melhora. Mas tampouco sei quando, e vivo a contradição de querer que passe logo e ter medo de deixar para trás. Tento me agarrar nessa ideia: Pablo me fez uma pessoa melhor, era um ser especial. iluminado. Com certeza levou com ele um pedacinho do meu coração. E essa é a dor da perda. Da ausência. Passamos por ela, porque é nosso caminho de vida natural lidar com isso - já aprendemos, mesmo que as vezes a gente queira desesperadamente não ter que lidar com nada, de nada. Mas como esse texto nem era sobre a morte, ou sobre a vida...

Pablo vai fazer falta. Sobra tanta falta que o Pablo faz. As vezes, transborda.

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