Carta de repúdio às canções da atlética da medicina da PUCCAMP.
Imagina uma universidade, um
espaço que forma “o futuro da sociedade” que pensa e reflete sobre ela, espaço
de debate, questionamentos, desconstrução e construção. Uma universidade a
serviço da população, de toda a população, que procura não apenas formar bons profissionais,
mas também pessoas melhores – humanamente falando. É, talvez essa universidade
esteja um pouco distante da nossa realidade, e infelizmente disso já sabemos,
mas as vezes ela simplesmente nos surpreende um pouco mais. Negativamente
falando.
Nessa semana uma denúncia
trouxe a tona o “submundo” da faculdade de medicina da USP de Ribeirão. Uma
música de conteúdo racista, machista e misógino, cantada pela bateria da
faculdade foi divulgada e as pessoas ficaram horrorizadas, dividas em discursos
de incredulidade ou de aceitação (“a gente sabe que é assim” ou “é só uma
brincadeira”). Junto com isso, inúmeras pessoas da universidade, até então
silenciadas começaram a denunciar práticas que, pasmamos todos, condiziam
exatamente com a mensagem da música. Isso significava que aquilo não era a exceção
da universidade, mas a rotina.
Há dois dias atrás tive
contato com a página da atlética da faculdade de medicina da PUCCAMP e lá estão
as letras de todas as músicas cantadas por ela. Bom, imaginem qual foi minha “não-surpresa”
quando vi que ali também havia letras extremamente machistas, homofóbicas e
preconceituosas, cheias de discurso de ódio e de violência – principalmente contra
a mulher. Fiquei refletindo como eu me sentiria ao presenciar o canto da música
que me qualifica como vadia da unicamp e, por isso, afirma que “o que eu preciso
é de um toque retal” e que dessa forma alguém/alguéns vai “transformar meu cu
em um regaço total”. É... A primeira pergunta que me veio à mente e que me
impulsionou o desejo absurdo de ir atrás da atlética para lhes perguntar foi uma
bem simples, na verdade: Por que vocês cantam esse tipo de música? Por que uma
música como aquela intitulada “o caralho” é entoada em encontros da medicina,
festas, jogos...? Qual o sentido que vocês veem nisso? O que vocês querem dizer? Por que vocês dizem
isso?
Isso me fez pensar inevitavelmente
em outra coisa: quão naturalizada é a violência sexual contra a mulher no nosso
mundo. É tanto, a ponto de você que está lendo o texto dizer “mas eu já sei
disso, fala algo novo”. Mas é ÓBVIO que você sabe disso. TODO MUNDO sabe disso.
Então, por que raios nós continuamos a permitir que isso seja naturalizado? Por
que raios vamos procurar algo novo para se falar ou se problematizar se isso
está acontecendo todos os dias normalmente, sendo que isso NÃO É NORMAL. Por
que será que se acha normal que esse tipo de música – extremamente violenta,
ofensiva, repugnante, desrespeitosa – seja cantada MESMO QUE DE BRINCADEIRA?
Por que será que é legal e divertido que se entoe um hino desses como sinal de
poder numa sociedade onde as mulheres são, LITERALMENTE, assassinadas, “arrombadas”,
destruídas, violadas por esse poder? Por que aceitamos como normal que um monte
de estudante universitário no auge de sua formação reproduza com tanto despudor
e tanta arrogância músicas preconceituosas e ofensivas, verdadeiros discursos
de incitação ao ódio e à violência? Então isso não pode ser normal. Então nós
PRECISAMOS falar sobre isso, em cada espaço de sala de aula, em cada matéria de
jornal, em cada debate, mesa de bar.
O fato de serem estudantes
de medicina – ainda que eu ache INACEITÁVEL que qualquer tipo de estudante de
qualquer curso pratique esse tipo de discurso – dói em mim um pouquinho mais.
Fico pensando que são esses os médicos que amanhã tratarão as pessoas pobres
(das quais sentem tanta repulsa como fica explicitado em seu discurso) as mulheres,
xs LGBTTs. Fico pensando o quanto aquilo que é falado representa aquilo que se
sente, que se pensa, que não foi desconstruído em nenhum momento. Fico pensando,
quando vou num ginecologista, se quando eu sair de lá ele vai gravar um vídeo “paródia”
com os amigos expondo minha situação de saúde e minhas dúvidas em relação a ela[1]
ou fico imaginando se o médico não vai achar que meu cu tem que ser arrombado
mesmo – porque eu sou vadia e mereço.
É, eu não tenho ilusões. O
problema é BEM mais embaixo mesmo. Só que quando alguém resolve falar,
questionar, problematizar esse alguém é silenciado: em nome de tradição, de
dinheiro, de estar “vendo machismo em tudo” e de que isso é só uma brincadeira.
SÓ QUE, quantas “brincadeiras” mais a universidade e a sociedade vão tolerar
até que isso realmente pare? Quantas mulheres vão precisar ser estupradas, “arrombadas”,
ridicularizadas, humilhadas até que se ache não tão normal esse tipo de
prática? Sério, essa dúvida é algo que está me consumindo dia e noite todas as
forças. Até qual ponto do poço vamos precisar chegar para que medidas sejam
tomadas e essas práticas sejam não só proibidas como os responsáveis punidos? E
isso é a ponta MÍNIMA do iceberg.
Repúdio total à atlética da
medicina da PUCCAMP e todos os estudantes envolvidos na composição e reprodução
dessas músicas e desse pensamento. Repúdio à universidade, conivente com essa
prática. Espero de coração que essas denúncias surtam efeito e que essa
universidade pare de tomar o lado do opressor, pare de ser parte da formação de
indivíduos tão mesquinhos, egoístas, opressores e tome as medidas cabíveis,
TODAS elas, para que seja possível, quem sabe, começarmos a pensar na
transformação desse pensamento...
[1]
Não sei se todo mundo lembra, mas em 2013 houve uma série de denúncias de
alunos da medicina da Unicamp que estagiam no CAISM e gravavam vídeos “de
zoeira” contando as histórias de suas pacientes