Sociologia do amor: a quase-simetria possível na sinceridade

Eu sou uma pessoa ansiosa, isso é um fato. Pessoas ansiosas também tendem a pensar demais sobre as coisas, prevendo infinitas possibilidades de como vai ser o futuro, sofrendo por antecipação. Vivem no dia seguinte, o que as prejudica nos seus afazeres cotidianos. Pessoas ansiosas sofrem com a expectativa de algo que vai acontecer. Torcem pela aceleração o tempo, o que prejudica o seu viver. Afinal, bem clichê mas bem verdade, o tempo é o tecido da vida. Essa ansiedade me prejudica em todos os âmbitos da minha vida, mas em um deles, no amor,  ela tem me atrapalhado além do aceitável. Afinal de contas, ninguém ama pra ficar sofrendo. 

Como qualquer mulher nesse mundo, coleciono histórias de opressão em relacionamentos que tive com homens. Confiante num projeto alternativo possível de sociedade, me reivindico feminista, o que ao contrário de "resolver meus problemas", me abre a perspectiva para um leque de possibilidades de opressão a que me submeto sempre que me relaciono com um homem heterossexual. Bom, isso não significa que eu não vou fazê-lo, e também não significa que os homens devem ser eliminados da sociedade. Eu acho que a luta é maior que essa. Mas verdade seja dita, o momento presente em que vivemos, nosso tempo, não vai ser suficiente para nos vermos em relações heterossexuais livres de opressão. Eu acho que os homens podem se reivindicar aliados na luta contra essa violência, mas impossível que isso signifique que haverá entre as mulheres e esses aliados uma simetria estabelecida dentro da relação. Essa é uma grande ressalva. 

Se relacionar com homens heterossexuais, então, é aceitar que você será oprimida e acho que isso não significa submissão. Tem a ver com o fato de que frequentemente queremos construir algo com eles. Tem a ver com se apaixonar, se envolver. Eu sou uma pessoa que se apaixona bastante e facilmente, algumas mais efêmeras e outras mais profundas. Alguns são pequenos casos, momentâneos, que na mesma rapidez com que surgem vão embora; outras são mais caóticas, causam tempestades. Também sou uma romântica embora tente me convencer do contrário, junto com todas as evidências de que a frase "o amor não existe", que eu ouvi em algum lugar, fazem mais sentido do que o oposto: o amor cura, o amor salva. Não sei, penso que talvez o problema seja mesmo a tentativa de definição. A verdade é que é possível viver grandeS amoreS na vida, que nos farão muito feliz assim como é possível que também vão nos machucar bastante - e querendo ou não nós aprenderemos com isso.

Uma coisa muito perceptível, no entanto, é que se todos amamos, homens e mulheres, a tarefa da reflexão afetivo amorosa praticamente é levada à frente pelas mulheres. Parece que afeto e relações amorosas são assuntos tipicamente femininos - ou feministas. Eu penso bastante sobre o tema, reflito muitos sobre as minhas relações e sobre as pessoas com quem me envolvo, e sei que as mulheres ao redor de mim também o fazem. Temos a percepção, no entanto, que história após história, são as mulheres que permanecem se entregando de cabeça nas relações, mergulhando fundo apesar dos riscos. Muitas vezes escutei o argumento cabal da entrega, da boca de um homem: eu estou vivendo um momento complicado agora. Estou passando por muitas crises, muitas mudanças. A centralidade da relação, oculta nesse argumento, é enxergada no e pelo homem. 

É verdade que há momentos em que não queremos uma relação e temos isso claro pra nós. É verdade também que as vezes simplesmente não sentimos o tal do click, tampouco comprovado cientificamente mas que juramos fazer parte do processo, mesmo depois de tentar mais uma vez. Tudo isso está ok se a outra parte envolvida tiver sido bem informada. Ora, no mundo que vivemos é quase uma raridade encontrar alguém que não está passando por grandes mudanças ou em crise ou que esteja "machucada" de outras relações. Essas coisas ditas também parecem servir apenas como desculpa para que o amor não aconteça - as vezes consciente, mas desonesta; as vezes inconsciente e, poucas vezes realmente verdadeiras.

Para isso, inclusive, as mulheres estão dispostas a práticas diferentes, que constantemente se traduzem nas repetidas frases, entre amigas, "por que raios continuamos sofrendo? por que nos entregamos tanto?" e, claro, há muitas respostas pra essa pergunta, todas corretas. Em grande medida isso acontece por conta de fatores externos da sociedade e pelas formas como os internalizamos e nos construímos como sujeitos. Tem a ver com uma educação machista, evidentemente, em que as mulheres internalizam a ideia de responsabilidade pelo outro, o cuidar de alguém. Fazemos isso com nossos companheiros, muitas vezes: cuidamos dele, no sentido mais materno possível (não manjo dessa discussão da psicologia, então não vou me arriscar pra além disso). Abrimos mão de coisas nossas; Nos permitimos sentir os diversos sentimentos, mesmo em fase de troca de emprego, de mudança de casa, de finalização de mestrado, e por aí vai. Bebemos infinitamente da fonte daquele amor romântico, que se doa - e esperamos isso, construímos ideais. Mergulhamos, em parte "condicionadas", em parte irresponsáveis com nós mesmas, sabendo no fundo que o se machucar "faz parte do amor". O sofrimento, principalmente feminino, é parte que compõe esse amor romântico, e nós o vivemos à risca. 

Uma vez, quando percebi que estava apaixonada, concluí depois de muita reflexão que isso me deixava triste. Não conseguia entender como havia me apaixonado tão rápido, mas sabia que isso me atrapalhava na organização da minha vida. Me sentia congelada, absolutamente tomada pelo sentimento que estava sentindo, que trazia ainda por cima todos os seus desdobramentos possíveis. Paixão é mesmo um negócio absurdo, se não não teríamos séculos de produções artísticas dedicadas a isso. É mesmo uma coisa que te tira sua racionalidade, te domina. Para pessoas ansiosas os momentos ruins, as ausências da paixão, aquelas partes que nos fazem sofrer são muito mais potencializadas. Percebi então que a experiência de sentir-me apaixonada me fazia mais mal do que bem, e que isso não deveria acontecer. Em minha reflexão, primeiro precisei considerar o peso do machismo nas minhas experiências. Como tive vários envolvimentos afetivos nos últimos anos, conheci muitos tipos de homens diferentes. Com alguns dividi momentos muito bons, mas também momentos de angústia incalculáveis. Com outros dividi experiências que na síntese da vida são facilmente esquecíveis. Sei que represento alguma dessas coisas para eles também. Não é possível fazer um cálculo racional, mas extrai da maioria das experiências uma das regras gerais do relacionamento heteroafetivo, que já escrevi ali em cima: é impossível alcançar uma simetria absoluta, concreta, colocada na relação. No entanto, é possível construir relações que questionam a assimetria e fazem o possível para combatê-la. 

Em todos os balanços que fiz dessas relações percebi que havia alguns padrões que se repetiam nos homens. Um dos mais importantes, e que acho que temos que incorporar em nós sem perder uma consciência feminista que penso ser coletiva, é que grande parte deles sempre preservou muito bem aquilo que gostariam de ser, seu próprio plano pessoal para o futuro. Era a partir disso que se colocavam "disponíveis" - a centralidade ou ponto de partida da construção afetiva estava localizada nos homens. Isso não precisava quase nunca ser falado, estava dado (e está). A racionalidade é extremamente consolidada e em geral todos eles sabiam se preservar, se colocar em primeiro lugar. Quando sentiam algum tipo de ameaça aos seus sentimentos ou bem estar, eles já se colocavam numa postura defensiva ou radical de resolução do problema: "não da mais pra gente se ver", seguido de algum clichê cujo eixo de argumentação é a interpretação masculina da coisa.

Experimentar esse padrão entre tantas experiências afetivas me foi uma puta chave pra entender algumas coisas, pelo menos na teoria. Quando se trata de relações afetivas a práxis é o calcanhar de Aquiles de todos nós, principalmente dos homens. Esse tipo de comportamento racional e auto-preservativo significa, mesmo que inconsciente, agir pela manutenção do seu privilégio. Nunca se perde de vista que a tônica é dada pelo homem - é ele quem reflete em cima de uma pedra sobre a solidão ou é ele quem tem uma revelação no tempo budista que lhe diz muito sobre a vida e o amor. Só que eles passam por cima do fato de que uma relação para ser realmente construída precisa que ambos os lados possam opinar, dizer o que sentem e o que pensam e, pra tudo isso, estejam dispostos a sair da sua posição de "conforto" ao mesmo tempo em que se desafiarão a entender a posição do outro lado. No caso das mulheres o curioso é que sair do "conforto" (que não é a palavra certa para o que eu vou dizer, mas ilustra a ideia), demanda  de nós muitas vezes passar de forma consciente por uma situação de opressão e relevá-la, engolir nossa dor ou administrá-la, nos "controlar". Para o homem, em geral, sair do conforto é abrir mão de um privilégio - e isso para eles parece ser impossível e doloroso.

Significa repensar desde "a origem" das relações, se propor ao debate teórico mais iniciante ao mais avançado, posto que os homens e as mulheres se envolvem a partir dos elementos culturais e simbólicos dispostos na sociedade. Há papéis que cumprimos dentro das relações. Somos conscientes disso? Nem sempre, mas as vezes somos. O curioso é que sabemos que isso não é determinista e, em geral, sabemos inclusive como resultar desse conhecimento uma "práxis afetivo amorosa" que seja contracorrente - anti-assimetria. É possível chegar às últimas consequências com essa práxis? Não acredito. Mas é possível visualizar a possibilidade, rs, orientar-se no sentido de construir algo para isso. A questão é que pressupor esse tipo de relação demanda estar aberto às contradições, sentimentos bons e ruins, reflexões, e mais um monte de outras coisas que nos ocupam. A práxis de resposta veio da boca de uma sábia amiga, depois de muitas doses de álcool, que quando solicitada a me dar um conselho disse: não se desespere, seja sempre sincera. Mais do que isso, saiba quem é você que está envolvida e o que você quer. Ou seja: torne-se também um referencial para um envolvimento. 

O que acontece é o seguinte. A posição de privilégio que os homens possuem lhes geram expectativas. Estas, por sua vez, giram muito mais em torno deles mesmo do que nós mulheres ou do que da propria relação. É, de novo, o problema do referencial: o homem e o que ele está sentindo/querendo é a régua, o medidor da relação. Isso se da porque eles são muito mais fortalecidos enquanto sujeitos políticos, sujeitos capazes - inclusive dentro de uma relação. Além disso, sabem que a situação de privilégio lhes permite um espaço de construção de relações pautado pela competição feminina, pela cultura do estupro e objetificação da mulher. Não é ladainha, sabe? É a realidade. O cenário todo lhes favorece, e eles se adaptam facilmente. Uma vez ouvi de um cara que traiu repetidas vezes sua companheira o argumento de que ele simplesmente não conseguia parar. Num primeiro momento, emputecida, não conseguia entender como ele tinha a pachorra de argumentar isso. 

Depois percebi que na cabeça deles faz o mais puro sentido. É simplesmente nadar conforme a maré. Fiquei pensando na minha paixão: ela foi arrebatadora, mas não veio do nada. Eu não estava lá aberta para isso, disponível. Na realidade eu tentei permanecer o mais fechada possível. Não sabia se estava na pegada de tentar, fiquei de boa. Só que, contaminada por uma boa dose de romantismo, as coisas vão acontecendo. Os flertes, as conversas e, obviamente, os jogos de conquistas protagonizados por um cara - porque é claro que eles sabem conquistar. Uma boa lábia, um charme aqui, um bom discurso político libertário - sei lá. Algo que nos atrai. Cada um tem sua cauda de pavão para construir o roteiro. Então, a primeira coisa foi entender que eu não me apaixonei sozinha. A gente não se apaixona sozinha. Podemos idealizar, claro, mas é impossível que se sintam coisas sem que se tenha sentido coisas! Entendem? 

Sei também que no calor de emoções e sentimentos, muitas vezes dizemos várias coisas para o parceiro ou parceira, mesmo que não existe ainda "intimidade" pra isso (que é algo também construído). No entanto, sempre que penso sobre isso concluo que o calor das emoções não é desculpa para falar coisas "da boca pra fora" e depois alegar que era algo momentâneo. Eu sempre penso muito antes de falar algo para alguém. Mesmo que seja algo que eu estou sentindo no momento, procuro primeiro sentir um pouco a pessoa, depois procuro ter certeza de que estou mesmo sentindo aquilo, tendo entender. Essa tarefa de reflexão, muito trabalhosa, me impede de sair por aí falando coisas da boca pra fora que podem servir como indícios para a outra pessoa. Mais uma vez é a uma preocupação que em sua maioria parte das mulheres. É muito mais fácil ao homem pode dizer e desdizer o que quer quando bem entender - e se apoiar num falso argumento da liberdade de dizer o que pensa, o que é completamente bobagem. 

Meu ponto é: dentro desse cenário de jogo que se constituem os rolos, afetos e relações é comum que a gente fique sempre apenas caçando as coisas e seus significados nas entrelinhas, aceitamos que ter diálogos, chamados ironicamente de DRs, é exagero, e que conversas são superestimadas. É tipo um Carpediem do amor, pregado e protagonizado por homens. As vezes, mesmo depois de meses intensos de paixão ou de algum tipo de relação, nosso parceiro espana diante da primeira conversa dizendo que "ainda é cedo..." ou que "queimamos a largada falando sobre aquilo". Enquanto isso os jogos continuam rolando, mas intoxicando principalmente as mulheres, ao mesmo tempo em que pode potencialmente destruir algo bonito a ser construído. Porque não falar sobre sentimentos e emoções? Porque não falar sobre expectativas? E o que é esse raio de hora certa para falar sobre algum sentimento? Essa "hora certa" vai ser sempre determinada pelo homem? É apenas quando ele decidir assumir ou negar? "Acho que estamos namorando". "Acho que não estou pronto para uma relação". "Acho que você quer demais de mim e não estamos na mesma sintonia". Oi? Acha como, você me perguntou? Quando conversamos? É irracional para nós! 

Disso já sabemos. Os homens sempre acham demais, mas devem acreditar que não somos capazes de entender seus argumentos e visões. Em geral eles tem muita dificuldade de lidar com a sinceridade, também porque lhes é muito custoso falar sobre o que sentem, principalmente com uma mulher. Eles não foram ensinados a explorar esse sentimento de se apaixonar por alguém, salvo exceções. Os elementos dominantes da sua sexualidade e afetividade são a masculinidade (negação do sentimento, do afeto) e a racionalidade individual (e egoísta). É triste, mas é isso. Há muitos homens que lutam contra isso, e nós vemos que conseguem fazer esforços, avançar  e por essas e outras que seguimos construindo relações heterossexuais. Mas precisamos entender isso, esses lugares da onde partimos: nós e principalmente eles. A sinceridade se desenha, portanto como a principal arma que nós mulheres podemos usar para nos fortalecer  como sujeitos, para nos blindar mais das dores dos amor e das desilusões e para construir relações progressistas.

É preciso aprender sim a falar sobre expectativas, para que isso não se torne um fator de sofrimento para as pessoas, principalmente para os ansiosos. É preciso que homens e mulheres na relação tenham consciência dos seus atos e falas, tenham portanto o cuidado (o famoso "pensar antes de falar", bem básico) para entenderem que uma relação é construída também pelas interpretações que outros fazem daquilo - e que assim é a vida. O que eu digo e como eu digo pode ter um peso para a pessoa, e eu preciso saber disso quando vou falar. Assim como ela, por outro lado, deve poder dizer "me desculpe, não entendi o que você disse" ou "olha, eu acho que posso gostar de você, temos ótimos momentos juntos e EU estou disposta à construção de alguma coisa a partir da exploração disso, o que você acha?", enfim - nenhum monstro de sete cabeças, apenas sentimentos sinceros colocados na mesa. Só que, claro, isso quase sempre soa como uma declaração aos ouvidos masculinos privilegiados, algo como "eu quero casar com você" ou "vamos viver juntos pra sempre". Aparentemente, se sentir "sufocado" é algo muito comum entre homens que precisam conversar sobre a relação. Curioso é que esse sufocar parece relativizado, já que mais de uma vez tive meu espaço pessoal invadido de diversas formas por atuações masculinas tidas como "conquistadoras". A régua que mede o que é sufocar ou não parece estar em posse exclusiva do homem heterossexual. Para nós, no entanto, a expectativa é apenas poder ter a sinceridade de dizer, de forma organizada e prática, o que sentimos e esperamos, coisa que eles deveriam poder fazer também. 

É algo bem simples, que poderíamos sintetizar, quando do início de uma relação em: escuta, daqui desse lado estou me entregando, quero saber se você também está disposto e, se sim, há a possibilidade de ambos se machucarem ou se você não está disposto e ai precisa me falar, para que EU avalie se estou disposta a me colocar mais em risco ou se me retiro. Algo assim, sabe? Algo que permita a NÓS mulheres termos a autonomia dentro daquele envolvimento para medir o quanto vamos nos entregar. E sem ter que ficar lendo as entrelinhas pra isso. Sem ter que se martirizar: mando ou não mando? digo ou não digo? Ele me escreve e me chama quando quer, mas tenho que respeitar o espaço dele. Enfim, ter autonomia com relação aos nossos sentimentos que não seja só pensar a partir do homem  e do que ele pensa. A assimetria está colocada, entende, mas ela passa a ser questionada porque, diante da sinceridade do diálogo é possível por um breve período despir-se e igualar-se ao parceiro, e concluir se há possibilidades ali ou não e o que fazer a partir disso. Munidos de todos os recursos, igualmente, as posições que ocupamos na relação podem se equilibrar mais. 

A maioria dos caras com quem me envolvi tinha pavor de conversas assim em que se propunha a falar de sentimentos e expectativas, e desenvolveram uma capacidade incrível de sair pela tangente e desconversar. Como desculpas, infinitos argumentos, afirmando que sentiam pressão para assumir responsabilidades. Em geral esses são os menos envolvidos nos debates políticos sobre feminismo, que em geral são os que propõem reflexões mais profundas sobre o envolvimento afetivo. Afinal de contas, o que seria do mundo sem nós, humanistas, que se propõem a debater o amor? rs 

Fora esses mais "por fora" das práticas alternativas das relações, havia e há ainda os que não jogam totalmente às claras, apesar de dizerem que o fazem. Esses, em geral, correspondem ao que muitas mulheres gostam de chamar de "feministos" pejorativamente. Eles podem jurar de pé junto que são sinceros, honestos e tem coração: mas a racionalidade masculina, construída em cima do seu privilégio de ser homem, ainda está lá. Esses se convencem de que o discurso formal se penetrá na sua práxis por osmose. Leem mecanicamente, discutem mecanicamente e em geral com pessoas que reafirmam sua convicções. Agarram-se nos ideias "maiores" e no discurso (pra mim ultraliberal) de que são livres e estão vivendo um momento muito único em suas vidas. A insustentável leveza do ser, chamaria Kundera. E se fosse assim poderiamos viver num grande bacanal de expressões de vontades únicas na vida, correspondentes aos momentos também únicos. É simplesmente uma desculpa esfarrapada, rs. 

Em geral, vacinadas que somos, sabemos que a maioria dos homens dão demonstrações, palinhas, sobre como são, e é com isso que lidamos quando nos envolvemos com os homens quase sempre. Vamos aprendendo a interpretar - mas também estamos sujeitas a interpretar demais. O problema é uma sinuca de bico: precisamos pensar muito sobre os envolvimentos, porque sabemos que podemos nos machucar pela assimetria (e tudo que escrevi até agora), ao mesmo tempo acabamos pensando demais, imaginamos coisas e as vezes criamos situações em que nos sentimos angustiadas - tudo porque não houve uma comunicação correta, sincera e respeitosa.  Aliás, nossos envolvimentos SEMPRE foram pautados pelo que querem os homens, mesmo de forma subentendida. O que ele vai dizer, o que ele está fazendo, etc. Resolver isso seria muito fácil, se houvesse de ambos os lados (e mais especificamente do masculino) a capacidade em se dizer o que sente/quer: "Sinto muito, eu não estou procurando mesmo uma relação no momento, nunca estive. Infelizmente não posso oferecer em troca o que você quer trocar comigo, então você precisa ver se está disposta a ficar comigo mesmo assim". Ou, ainda: eu acho que você está me sufocando. Eu não sei o que eu sinto agora, eu gosto de você, mas acredito que precisamos ir mais devagar. Tudo bem por você? Não quero espanar, pois podemos nos machucar, então vamos com calma". Enfim, é difícil expor sentimentos? Sem dúvida. Retiramos a armadura da insensibilidade afetiva em voga e vamos ao deserto nus. Só assim, diria Saramago, nos é possível entender a realidade. 

Algo que me ajudou foi que comecei a adotar a didática da pergunta para lidar com as tais entrelinhas, principalmente com os caras desconstruídos (que podem nos machucar tanto quando um fã do Bolsonaro, ainda que de formas diferentes), mas mesmo essa tática não é usada com tanta frequência quanto gostaria, até porque eu sei que as vezes entortamos a vara demais e achamos que TUDO DEVE ser conversado. O equilíbrio aqui também é importante. Em geral, no entanto, engulo muita coisa de opressão até hoje, além das muitas reflexões que gostaria de fazer coletivamente, porque sei que para um homem isso é perder tempo precioso da vida dele e para mim pode ser o ponto final de um rolo que até era agradável (afinal de contas, embora alguns homens insistam m não saber, nós mulheres também temos necessidades, rs). Esse tipo de diálogo necessariamente é ter que rever uma posição de privilégio e  no fim se posicionar, algo completamente difícil para os homens afetivamente falando. A construção de uma relação, penso eu, é desconstrução dos indivíduos que nela se envolvem, o que requer destes a disponibilidade e disposição de rever posições de privilégio/opressão e, para tanto, dialogar com sinceridade. Essa "receita", simples de escrever, é terrivelmente mal praticada porque é difícil.

Independente disso, acho que precisamos olhar pra ela como caminho. Para nós mulheres isso significa dividir aquele peso da responsabilidade afetiva pela construção da relação, que carregamos quase sempre sozinhas. É dividir o "fardo" que é pensar, refletir, criticar e se autocriticar. Claro, no começo estaremos sobrecarregadas, mas precisamos partir de algum lugar. A mesma amiga que propôs a sinceridade como resposta me disse: "vai haver homens que não estarão dispostos, paciência. Independente de qualquer coisa, eles precisam ter contato com esse tipo de prática. Eles precisam aprender, na boa ou na marra, que se relacionar é assim". Se a prática funciona, aos poucos talvez o seu companheiro comece a entender finalmente o que é essa construção, quase como a discussão sobre divisão de tarefas domésticas, e a relação pode ficar mais leve pra você. Só que isso demanda, necessariamente, que a gente se perceba como sujeito na relação, nós mulheres. E eu SEMPRE chego nessa conclusão: por várias formas distintas, nós somos aniquiladas ou extremamente podadas em nossa capacidade criativa, em nossa possibilidade de SER. Aí as relações tornam-se pesos (um caminho fácil, inclusive).

Quando nos reconhecemos como sujeitos, admitimos que temos opiniões, sentimentos, além de sonhos e ambições para ALÉM do nosso parceiro. Isso é importante porque é muito fácil abrirmos mão de nós em uma relação, enquanto que o contrário quase nunca acontece. É impossível contabilizar as vezes que as mulheres abriram mão de si mesmas pelos seus parceiros ou relações. O incrível é que todas as vezes em que eu resolvi me manifestar nesse sentido numa relação, o resultado a tornou insustentável para ambos. Já passei por experiências onde eu disse: eu tenho isso como princípio e meu parceiro não se dispôs a tentar. Claro que ninguém é obrigada a nada, mas não houve sequer uma tentativa, uma reflexão - apenas a resposta pronta: isso eu não consigo, ou muda você ou terminamos. Esse é só um exemplo de muitos outros que já vivi. Quando as mulheres demonstram que são sujeitos, e sujeitos inteiros, da sua própria vida, os homens sentem "medo" - sentem mesmo que inconsciente a ameaça aos seus privilégios. 

Por isso, além de nós nos vermos assim, os homens precisam aprender a nos ver da mesma forma, entendendo que o fato das mulheres avançarem na sua humanidade, nas suas possibilidades de existência ao contrário de os prejudicar será algo bom para todo o coletivo. É isso que queremos dizer quando o feminismo deve ser uma bandeira de todos (e não só isso, claro). Entender que somos sim protagonistas, e que da mesma forma que isso não os impede de, em tese, ter uma companheira, não deve impedir a nós. Claro, na realidade é muito comum um homem espanar com uma mulher que se afirma sujeita da própria vida. Um dia, li uma entrevista com a companheira do Mano Brown, classificado por ela mesma como um puta cara machista. Essa entrevista foi a tônica pra mim. Não é possível que nos anulemos em nome de uma paixão, de um amor, deixando que eles sejam e sonhem tudo por nós. Não é possível que carreguemos dores e angústias em nome de permitir que eles vivam suas experiências felizes. 

Se dispor a tudo isso pode significar quebrar a cara também. Sofrer muito. E isso é o que temos que levar em conta como possibilidade, quando munidas de todos os argumentos decidimos o que queremos. Se eu opto por me envolver mesmo sabendo que não estamos alinhados totalmente no sentido afetivo, também posso me preparar para lidar com o fato de que é possível que vou sofrer. Se eu avalio que não vou aguentar, me retiro antes de me entregar por completo, naquele momento em que a maioria das coisas ainda eram leituras e interpretações e só. Afinal, tem muito cara que simplesmente não está disposto: as vezes até quer tentar e falha miseravelmente, as vezes nunca esteve disposto e sempre nos enganou. Há também a possibilidade de se machucar mesmo quanto tudo parecia bem e sintonizado, e em algum momento a relação vai encontrar algum limite, mas se foi construída na base do diálogo e da sinceridade, o processo de descobrimento disso e as consequências que trará será muito menos doloroso, tenho certeza.

Desde que eu adotei parcialmente essa prática, percebi como é difícil para um cara conversar olhando no olho mesmo. Se abrir. Já eu as vezes eu me propunha falar mesmo que não soubesse direito o que. O que a gente tá pedindo, de certa forma, é pra que se atente aos privilégios objetivamente dados ao estabelecer QUALQUER tipo de relação, envolvimento, tomando cuidado para não machucar a outra pessoa. Em geral acho que uma postura que chamo de "feminista" dentro de uma relação tende a "assustar" alguns caras, mas é preciso insistir para que o diálogo seja  um motor das relações. Qualquer diálogo, desde o início. Não pode ter essas desculpas de que mal conhece a pessoa e bláblábá. É preciso aprofundar as formas de comunicação e aquilo que é comunicado, se não além de tudo esses sentimentos todos viram tabus ou ainda se normatizam como padrões de comportamento.

Poder dizer: "olha, estou aqui só pra trepar, de verdade não consigo me dedicar a ter nada agora, não consigo me ver dividindo meu tempo entre mim e outra pessoa". Ou, "olha, to procurando algo sério, sei lá, cansei dessa vida de pegar todo mundo. Não to dizendo que é você, mas to dizendo que to aberto à possibilidade, o que você pode trocar comigo aqui?". Até, inclusive: "você está fazendo isso de um jeito ruim, você está me machucando" - enfim, e que esse diálogo se expanda para todos os aspectos da relação. 

Nem sempre vamos ter respostas na hora - a construção exige paciência. Num tempo tão louco onde é tudo muito rápido, onde todo mundo tá sufocado de trabalho e obrigações, onde o capital consegue entrar pelos poros de todas as relações contaminando-as, é preciso ainda assim ter paciência. Ter dedicação. Ter disposição. Comunicar. Escutar. Ou seja, uma combinação de elementos absolutamente em baixa na nossa sociedade. De novo, é impossível? Não é. Mas é difícil. Principalmente para nós, mulheres. A princípio é uma exposição de nós, inclusive. É tipo um "dar a cara a tapa", é se questionar se você é louca, neurótica, blá blá blá.

Eu não vejo outra forma, inclusive a médio prazo, de aliviar o peito de tanta angústia e tanto sofrimento, seja acumulado das experiências passadas, que geram ecos e efeitos tanto em nós individualmente quanto no que carregamos para outra relação, seja pelo sofrimento antecipado - pela insegurança, pela ansiedade, pelo medo que nos paralisa. De fato, também precisamos repensar essa paixão e esse amor tão ligados à ideia da propriedade, da posse - do ter algo e, portanto, ter medo consequentemente de perdê-lo. Se pensamos o amor como uma relação construída e desconstruída, pensamos o amor numa dialética. Não é algo que se tenha, é algo que se produz continuamente, é um processo. Não é fluido, claro, pois tem suas diversas bases materiais e simbólicas, principalmente em nossos corpos/mentes, mas não é algo dado também, coisa estática - e muito menos não é algo que cria uma relação de hierarquia, que envolve posse/propriedade. Mas isso é outra história. 

A mistificação dos elementos da relação, as entrelinhas, em geral só nos causam dor e sofrimento. Não apelo evidentemente para a crueza ou falta de mediação das palavras, para o supercompatilhamento excessivo de tudo que se está pensando ou, ainda, para uma solução mecânica, onde tudo DEVE ser dito não importa o que (afinal de contas, como dito antes: pensar antes de falar). Sabemos muito bem, em geral, o que é aquilo que sentimos essencial de se comunicar, pois são essas coisas que tendem a se acumular no peito. Além disso, também vamos percebendo, ao longo da construção, o que precisamos ou não dizer e como, pois vamos apendendo também na troca com o nosso parceiro. As vezes estabelece-se um terreno onde o flerte é permitido, porque as intenções já foram colocadas - e porque se for preciso colocar de novo, claramente, é possível fazê-lo e tudo bem, se isso for saudável para ambos. O flerte é constitutivo da paixão, e uma certa dose de sofrimento ansioso, arrisco dizer, infelizmente também. Meu ponto é, no entanto, que nós mulheres devemos também poder "escolher" onde vamos entrar e como. Devemos também ser o ponto de partida e referencial qualitativo da relação, afinal de contas nós também a construímos. 

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