cravado
Tem uma coisa que sempre fica, uma coisa que incomoda. Parece um espinho, uma farpa bem encravada na pele, que se estilhaçou pra gente achar que cada pedaço minúsculo dela que conseguimos tirar é realmente ela inteira.
Claro que cada um tem sua ideologia, tem suas crenças, tem seus motivos, tem sua fé. Claro que cada vida é uma vida inteira pra se buscar isso. E eu aqui, farpa por farpa, tentando buscar uma fé. Fé. Deve ser isso, deve ser encantamento, magia. Ninguém falou que era fácil, porque se você se atentar à vida - aos detalhes, que é o que deixa as coisas bonitas - vai perceber que são eles também que deixam a vida insuportavelmente sofrida. Cada coisa com uma coisa por detrás, cada motivo com uma razão, cada razão parte de uma engrenagem que massacra, todos os dias, massacra a gente. E, viver amortecido pode não ser tão ruim...
Viver é bom. Não ousaria dizer o contrário, porque tenho um amor à vida acima de mim mesmo - o que inclusive não me permite desistir das coisas, não assim tão fácil. Acho que é questão de se agarrar em alguma coisa, o "aponta pra fé e rema". Você descobre, descobre que se você é daqueles que gosta de se atentar aos detalhes, precisa de um propósito, precisa de uma esperança, precisa desesperadamente criar um ganchinho no mundo e se prender a ele, se não você cai... ou se joga.
Queria avisar que é insuportável. É dia sim, é dia não. E é covardia também, seria estranho se fosse chamado de outro nome. Eu sou pura covardia. Não achei ainda o que eu precisava e pensei em colocar um fim nesse sofrimento. A gente cansa. Metade do mundo pelo menos é assim, vive cansada. De que? De passar fome, de ser violentada de alguma forma, de não ter tempo pra abraçar a criança que gerou no ventre, de não ter coragem de abandonar o marido que te espanca, de varias coisas. Mas estão muito mais cansados de pensar que pra isso mudar precisa muito, muito... E precisa mesmo, e acho que metade do mundo sabe disso, mas as pessoas estão assim, tão perdidas, tão ausentes, tão distantes de si mesma, de seus companheiros, de sua própria vida... É tudo máquina, pura máquina, puro metal, puras tonelada te esmagando. Não há fé que aguente, não é suficiente....
Eu tenho me alimentado de uma tristeza infinita, uma vontade de ficar sozinha, de não sentir absolutamente nada além das minhas quatro paredes, dos meus livros... Porque eu sinto que queria ser eterna, pra ter tempo de viver muito mais, de ler tudo o que eu queria ler, de saber tudo que eu queria saber, de experimentar tudo que eu queria experimentar, mas ai eu sinto também, como uma coisa que meio que incomoda, meio que dói, meio que sangra, todos os dias, que viver assim, dos detalhes, sabendo sentir a dor das pessoas, é insuportável. Viver é insuportável nesse mundo. Não há fé que mude isso, e essa é a fé que a gente tinha que ter. Pra mudar.