Um BBB representa muita gente...

Ângela e Marcelo são dois participantes do Big Brother Brasil 14 que em determinado momento começaram a ficar. Passado um tempo, Ângela pareceu desencanar e decidiu colocar um fim no “relacionamento”. Foi paciente, explicou pro cara seus motivos e disse que, como conviveriam na casa por mais algum tempo, queria ser sua amiga. Não havia maldade – As pessoas ficam e as pessoas desencanam e, bom, quando UM não quer, dois não fazem, né? Marcelo se surpreendeu, tentou argumentar que Ângela estava fazendo um joguinho, um “doce”. Quando ela foi firme em sua decisão, Marcelo azedou. O cara que era uma referência de amorzinho, doçura, meiguice e um pobre coitado rejeitado (após se envolver com outra participante da casa) começou a colocar suas asinhas de fora. Brigou com Ângela, não aceitou ser SÓ AMIGO, criando tensão com a menina na casa. Depois de um tempo, a contragosto, teve que aceitar a decisão e se manter como um colega. Ou a gente achava que aceitou.

Bem, eu assisti a edição de domingo do programa, que faz um apanhado do dia anterior. Também assisti aos vídeos na internet, livres de edição. E olha, só pela edição já fiquei assustadíssima. Assim, sem julgar, queria contar para vocês o que aconteceu: Ângela bebeu. Bebeu muito, ficou muito bêbada. Em um determinado momento Marcelo se retirou da festa e Ângela foi chamá-lo para voltar. Na sala da casa, os dois se abraçaram e Marcelo “gentilmente” encaminhou Ângela até o sofá, tentando beijá-la. A menina pediu para ele parar, disse que eles já tinham conversado, que não queria, colocando suas mãos no peito dele para ele não avançar. Ele ficava insistindo, mais ou menos num tom de brincadeira e docilidade, colocando a boca perto, usando seus braços para tirar os braços dela, pressionando. No fim, pediu então pra ela dizer se não tinha vontade, e ela respondeu “não”. Marcelo saiu sem falar com ela, visivelmente irritado. De volta à festa, durante uma chuva de pó colorida, mais uma vez os dois se abraçaram. Mais uma vez Marcelo pressionou “estou com muita vontade de te beijar”. Ângela seguiu negando, pedindo para ele parar. Um tempo depois, bastante bêbada Ângela se deitou com ajuda de Cássio num amontoado de almofadas, Marcelo chegou e jogou água de uma garrafinha na cara dela. Cássio disse “Não faz isso, ela pode se afogar!” e Ângela se irritou bastante, gritando para ele parar. Ele parou, ficou observando por alguns segundos e jogou a água de novo. Ela gritou e o chamou de idiota. Marcelo pegou uma almofada do chão e jogou na cabeça de Ângela e saiu. Voltou depois de um tempo, tentou conversar com ela que afirmou estar com vontade de dormir, e até permitiu que ele deitasse ao lado dela para dormir, se ele quisesse. Ele deitou, mas começou a fazer carinho, a dar beijos em seu rosto e a ficar em cima dela. Todo mundo da casa estava na festa vendo as cenas, só Cássio comentou, finalmente, que alguém precisava tirar ela dali. Todo mundo concordou, mas receosos sobre como Marcelo ia reagir. Cássio então foi até lá, chamou Ângela e disse pra ela se levantar, que as meninas iam lhe dar um banho. Marcelo se irritou com Cássio, questionou ele, disse que ele mesmo daria banho nela. Ângela saiu com as meninas. Mais tarde uma das participantes foi dizer a Marcelo que Cássio afirmou tê-lo visto beijando e abusando de Ângela. Marcelo virou o bicho, foi tirar satisfação com Cássio, gritou, foi pra cima, deu murro na parede e quebrou coisas. Cássio manteve o pé firme: eu vi. No dia seguinte, no programa ao vivo, Bial permitiu aos dois que se explicassem – Cássio e Marcelo – e ambos mantiveram seu posicionamento. Ao se voltar para Ângela Bial perguntou se a garota realmente tinha bebido tanto, porque pelo que ele viu, ela não tinha bebido muito. Perguntando se aquela situação que ela aparentava estar (muito bêbada) era real. Ângela afirmou que sim, que bebeu muito, que não se lembrava de nada do que aconteceu que “apagou”. Ressalto aqui: durante a briga e o pós-briga a maioria dos participantes defendeu Marcelo. Apenas sugeriram terem visto certa insistência e aproveitamento do Marcelo na situação. Alguns, inclusive Marcelo, afirmaram que aquilo era um absurdo, já que Marcelo e Ângela já haviam se relacionado antes, que não tem problema ficar com alguém que está bêbado, e daí pra frente.

Gastei muito espaço para contar a história, mas os detalhes são importantes. Me doeu o estômago quando a única pergunta que Bial fez à Ângela foi no sentido de duvidar do estado em que ela se encontrava. Bial é uma peça importante no jogo. Ele da informações aos participantes, provoca discussões e interfere lá dentro, ocupando um lugar privilegiado no desenrolar da trama. Perdida na situação por não se lembrar de nada, influenciada por Bial e por todos os outros participantes que defenderam incondicionalmente Marcelo na discussão, Ângela se deixou levar pela versão de que como já havia se relacionado com Marcelo e o conhece, sabe que ele jamais faria nada com ela. Cássio firmou sua posição, voltou atrás apenas para reconsiderar as palavras usadas por ele na discussão com Marcelo: abuso e estupro, que achou ser exagero.

Mas vamos lá, caros coleguinhas BBB’s – e também caros todos aqueles que assistem ou acompanham o programa. Na nossa lei brasileira estupro não é definido APENAS pelo ato sexual com penetração não consentido. Tudo aquilo que se faz com uma pessoa que não for consentido – beijar e acariciar, por exemplo – É estupro. Se a pessoa está bêbada e fora da sua centralidade e possibilidade de reação e de tomada de decisão, há um adicional: ela é vulnerável. Conclusão? Estupro de vulnerável.

Agora, há ainda MAIS um elemento. Ângela foi TRANSPARENTE em DIVERSOS momentos quando afirmou: NÃO quero mais ficar com você. NÃO tenho mais vontade de ficar com você, de beijar você. NÃO me beija. NÃO faz isso, nós já conversamos. E Marcelo – aquele cara, pobre coitado, rejeitado, cujo problema é só “ser insistente demais na balada” – permaneceu nas suas investidas cansativas, utilizando do seu tamanho e de sua força e de sua posição objetiva enquanto homem para tentar beijar e abraçar Ângela REPETIDAS vezes. Se irritou quando ela afirmou categoricamente: NÃO estou com vontade de te beijar. Voltou a tentar novamente, ouviu que ela NÃO queria ficar com ele e, quando a viu deitada, desacordada (sim, ela estava bêbada E desacordada) deitou ao seu lado e ficou fazendo carícias e dando beijinhos. De amor, gente? ME POUPE!

Estou ressaltando que ela estava bêbada não para culpá-la – embora Pedro Bial e metade do planeta com certeza o fez – mas para lembrar a todos que quando estamos bêbados, muito bêbados, não temos a mesma força, mesma capacidade e mesma centralidade para nos defender, para agir, para reagir. Porque gente, verdade do mundo: MUITA gente bebe, e entre esse “muita gente”, muita MULHER bebe. E muita mulher bebe e fica bêbada. Se álcool faz bem ou faz mal, não é o que interessa. Fato é que as pessoas bebem para se divertir e elas TEM O DIREITO de poder fazer isso. As mulheres bebem para se divertir, e quando elas bebem para se divertir elas só bebem para se divertir. Simples, não? Lógico, eu diria.

É aqui que chegamos a uma encruzilhada na história toda: CULTURA DO ESTUPRO. Por algum motivo (machismo) algumas pessoas acham que quando AS MULHERES estão bêbadas elas estão “dando mole”, tentando seduzir alguém, “pedindo e provocando”. Por algum motivo, os homens acham que quando as mulheres bebem e ficam bêbadas ELES podem decidir POR ELAS o que os dois devem fazer – ou melhor, o que ELE VAI FAZER COM ELA. E eis a cereja do bolo: Por algum motivo as pessoas acham condenável as mulheres beberem, e justificam que se não fossem ELAS terem bebido e provocado, assédios, abusos, violência e estupro não aconteceriam. É a famosa lógica de “que roupa você estava usando quando foi estuprada?”. Oras, do que importa a roupa que eu estava usando? EU FUI ESTUPRADA. Violaram meu corpo sem a minha permissão. Fizeram uma coisa comigo sem meu consentimento.

Ou seja, do que importa se eu estava ou não estava bêbada? Se eu estava bêbada, desacordada e NÃO consenti com a ação, porque ela aconteceu mesmo assim? Aliás, Ângela foi muito enfática e direta: NÃO quero. Matemática pura, gente: NÃO = NÃO. Ou, velho ditado, “quando um NÃO quer... dois NÃO fazem”. NADA, no mundo inteiro, justifica ou permite que Marcelo aja como agiu. Desde a agarrar usando a força (reparem que o uso da força foi MUITO sutil, mas existiu, estava ali, nas entrelinhas, já que a partir do momento que eu tenho que usar meus braços para impedir que você se aproxime de mim, se torna mais do que uma agressão verbal ou emocional. Se torna física. A partir do momento em que eu tenho que ficar virando meu rosto para você não me beijar, também). A partir do momento que Ângela disse: NÃO joga água em mim, não é pra jogar. NÃO quero ficar com você, não é pra ficar. Simples, piece of cake, não? “Ah, mas tem mina que fala não pra se fazer de difícil”. NÃO importa. NÃO é, e continuará sendo, NÃO. Na dúvida, guri, você vaza. Você, com seu topete de macho alfa do pedaço, garanhão conquistador, quando ouvir um NÃO vai dar meia volta e desencanar. Regra de comportamento BÁSICA.

O que dói, no fim das contas? Além da agressão que Ângela sofreu durante a festa inteira, doeu ver a reação dos participantes. Metade permaneceu em cima do muro, não adotando lados para não se “queimar” aqui fora. Para essas pessoas, que gostam de ponderar tudo, eu digo: queridos, o mundo é feita de lados. Vocês estavam na festa, conhecem a história dos dois, viram o cara lá, torrando a paciência da mina, e não fizeram nada. Um simples “Marcelo, sai fora, ela tá bêbada” era suficiente, e isso não rolou, no limite, vocês escolheram um lado – a omissão é um lado também. A outra metade adotou a postura de defender o cara, mesmo depois do show de explosão de raiva e violência que ele protagonizou. Uma das participantes defendeu o cara com unhas e dentes, dizendo que “não é abuso se não toca nas partes íntimas”, argumentando que “eles foram casal eles se entendem”... Isso doeu. Sabe, é só fazer uma forcinha que vocês vão perceber: o cara não precisa enfiar a mão na minha buceta para caracterizar abuso. Se eu não consenti, se foi contra a minha vontade ou se eu não pude nem escolher, É ABUSO. Não vi NENHUMA dessas pessoas questionarem o Marcelo minimamente que fosse. Algo do tipo “mas você jogou água, sacanagem”... Nada.

 O cara não pediu desculpas para a Ângela em NENHUM momento, aliás, o bilhete premiado do machismo: ELA se desculpou com ele por ter duvidado, por ter ficado confusa e não ter se posicionado a favor dele no programa de domingo. Vem cá, todo mundo já ouviu falar das estatísticas de que a maioria das mulheres são violentadas por homens que elas CONHECEM? Pois é, gente. Não to dizendo que é fácil, no caso dela é pior ainda. A pressão psicológica deve ser imensa. O apresentador do programa questionar ela ao vivo deve ter causado uma puta confusão na cabeça. Imagina só, você NÃO lembra o que aconteceu e é bombardeada de informações, de ponderações e de pessoas DUVIDANDO de você e da sua postura. Não culpo a Ângela por recuar. Ao invés de limpar a história mostrando o vídeo inteiro para a Ângela – e para todo mundo naquela casa idiota – deixando as pessoas reverem aquilo, de outra perspectiva, livres do álcool o apresentador do programa optou por questioná-la. Optou por embarcar na docilidade do homem de bem que é o Marcelo, injustiçado por um Cássio que já babou vários preconceitos lá dentro (Vem cá, o fato dele ter sido racista faz com que o MARCELO seja menos atingível? Não entendi).

Aliás, todos nós sabemos o que é esse maldito “homem do bem” da nossa sociedade, não? E isso ficou comprovado com a votação do paredão de terça: Marcelo foi o MENOS votado dos três. O único momento em que se retratou foi sobre a reação violenta, assumindo que exagerou UM POUCO (cejura?). Ameaçou Cássio, dizendo que ele ia pagar lá dentro ou aqui fora. Não sei se ele esqueceu que as câmeras, apesar de tudo, filmaram a festa inteira ou se ele, ocupando seu lugar de macho alfa escroto privilegiado, simplesmente não consegue entender que o tipo de atitude que adotou é típico de um imbecil incapaz de raciocinar ou respeitar alguém e INACEITÁVEL.


Ficamos com a sensação de perda de fé na humanidade.  (Abaixo, vídeos do episódio narrado):
1. http://gshow.globo.com/bbb/bbb14/noticias/noticia/2014/03/cassio-se-irrita-e-tatiele-tira-satisfacao-com-marcelo-sobre-angela.html

2. http://gshow.globo.com/bbb/bbb14/noticias/noticia/2014/03/marcelo-tenta-reatar-com-angela-que-dispara-nao-tenho-vontade.html

3. http://gshow.globo.com/bbb/bbb14/noticias/noticia/2014/03/apos-banho-de-po-colorido-marcelo-tenta-beijar-angela.html

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