Notas sobre o luto - Ou a realidade como ela é.

Há um pouco mais de um ano tive minha primeira experiência com a perda de alguém. Alguém que tinha sua dimensão de importância na minha vida, que me ajudava a significá-la e entendê-la - alguém que em menor ou maior grau possuía um espaço e a quem eu atribui um significado. Acho que o mais maluco de tudo foi que por muitos dias e semanas realmente doeu. Me peguei contendo lágrimas e colocando o pensamento de lado para não lidar com ele.
Sempre ouvi falar de maneiras de se lidar com o luto - ou os cinco, seis, sete passos do luto. Ainda acredito nisso, mas percebi que, quando fui lidar com o meu luto, quis acelerar o processo ou passar logo por todas as etapas ou mesmo pular algumas, pra ver se de alguma forma aquela dor e aquela sensação de vazio se transformavam em alguma coisa que fosse alegre - e cheia. É comum as pessoas argumentarem que, ao lidarmos com a perda de alguém querido, precisamos nos prender naquilo que foi bom, que trouxe felicidade, nas boas lembranças desse alguém. E por muito tempo isso me desesperou porque na verdade eu comecei a esquecer - parecia que no instante - das boas lembranças, salvo algumas coisas que a insistência da repetição me cravaram bem na memória:
Mas e o resto? sobre o que eram as nossas conversas? Quais foram, dentre os muitos, conselhos mais marcantes? Quais as lições que eu aprendi e deveria ter aprendido para toda a minha vida? Tinha a sensação de que, junto com a partida do corpo físico também foi o corpo de lembranças que eu poderia guardar.
Depois de um tempo comecei a perceber que, inevitavelmente, o tempo, a ocupação das horas do nosso dia, os compromissos e o trabalho sugam nossa atenção e acabam por dissipar nossa mente. Em outras palavras, cura tudo. Talvez também tenha a ver com o significado que aquela pessoa tinha em nossas vidas, porém nessa minha experiência sucedeu que, eventualmente apenas eu pensava alguma coisa sobre ele e, quando pensava, descobria que eu não sabia muito mais. A gente começa a deixar pra lá, numa tentativa de que aquilo se feche sozinho, sem precisarmos nos esforçar, e que aquele vazio seja preenchido de novo, de alguma forma, qualquer forma.

Porque, então, eu escrevi tudo isso, mais de um ano depois?
Esses dias eu estava sentindo uma inquietação muito grande, uma agitação em mim como se eu precisasse sair em busca de algumas perguntas que acalmassem algumas aflições que se levantaram na minha alma. Eu queria dividi-las com alguém que eu saberia que entenderia. Eu queria conselhos de alguém que eu sabia que aconselharia. De repente eu me dei conta que não era de "alguém" que eu precisava, mas de um alguém em específico - e me peguei pensando em telefonar pra ele para "dar uma passada ai na sua casa de manhã". Foi involuntário, quase como se eu não estivesse aqui no ano passado e não soubesse o que tinha acontecido. Queria contar que estou aprendendo italiano há mais de um ano e que precisava de algumas dicas de como treinar melhor. Queria conversar sobre as convulsões e greves nacionais, sobre política. Queria um ou outro puxão de orelha. Queria aquele significado daquilo que eu atribuí essencialmente a apenas uma pessoa. Queria aquele significado que não encontrei em mais nenhuma outra pessoa novamente.
Comecei a entender que, por mais que eu tenha acelerado o processo, eventualmente o tapa-buraco sairia porque esse tipo de processo não é "acelerável". Quando atribuímos significado e importância a alguém em nossas vidas - e quando isso de alguma forma se consolida - é impossível que se possa digerir tão fácil que essa pessoa simplesmente não está e nem estará mais ali. Essa quebra de referência e ausência repentina dificultam ao mesmo tempo em que escancaram que a fragilidade da vida e a necessidade das representações é tamanha, é tão grande, é gigante...
Procurei encontrar, a partir desse momento, uma maneira em lidar com o luto - alguma de suas fases, não sei - de maneira que eu pudesse, primeiro, enfrentá-lo de frente e, depois, de maneira que a perda se transformasse não mais no vazio ou na ausência (porque aprendi que o vazio, por mais que busquemos enchê-lo de diversas formas diferentes, tende, em algum momento, a voltar a ser vazio) mas uma espécie de libertação - no movimento contínuo que é ir - voar - voltar e ser livre. Me peguei pensando no nosso último encontro no hospital, naquela personificação do moribundo, na dificuldade em respirar, na dor da internação - e me cobrei por ter, naquele momento, prometido que tudo ficaria bem. Afinal de contas, se tudo ficou bem, realmente não sei. Mas comecei a atribuir àquele momento o sentimento puro que eu sentia, e que me traria paz e a possibilidade de lidar com a perda: o amor, traduzido na camaradagem, não possui limites ou tristezas. Ao meu camarada eu desejava de todo coração que tudo ficasse bem - e, talvez, de alguma maneira, tudo ficou - e ficará - bem. Isso me tornou possível perceber que eu não precisava ficar lembrando, desesperadamente, para não esquecer. Ou que eu não precisava ficar lembrando para ter boas memórias guardadas comigo para sempre. Me tornou possível perceber que não teria problema sentir saudade (sem egoísmo) daquela pessoa e do seu significado pra mim, ou mesmo desejar telefonar ou conversar sobre alguma coisa - e eu tenho certeza que conversas e assuntos não faltariam. E que eu não precisava me importar por ter esquecido necessariamente daquele ou deste conselho, porque o amor e a camaradagem não é isso. Não poderia mais perguntar "o que o Edmundo faria ou diria?" porque a impossibilidade de responder essa pergunta me faria ficar presa nas possibilidades de resposta que ela teria. Ao respirar fundo, seria preciso pensar "o que eu faria?"

Concluí: a saudade e a significação podem permanecer. A libertação é indispensável. As pessoas não são substituíveis, não do ponto de vista dos sentimentos. Mas elas vão embora. Lidar com isso é uma das tarefas mais aterrorizantes, difíceis, dolorosas e importantes que temos que lidar enquanto seres humanos (racionais). Ser forte, já que ficamos. E desejar poder ver aqueles que partem como pássaros, sempre presentes de alguma maneira, mas livres, finalmente.

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