sobre amor livre e subjetividades tantas

O amor é construção. As relações são construídas. Quando nos propomos a ter uma relação aberta (o tal amor livre)é, ao mesmo tempo, uma desconstrução. É a proposta de olhar para questões que, normatizadas, seriam problemas e se propôr a pensá-las conjuntamente. Não é perfeito, não é a resposta para os problemas da sociedade, não é livre realmente - isso não existe. Não é imune às opressões, inclusive também se é contaminado por elas. As relações são construídas objetivamente, mas dependem também dos sujeitos que as constroem, dispostos a isso, com seus vícios, sonhos, desejos, sentimentos. 

Construí uma relação por três anos. Desconstruí nessa relação por dois. Tivemos os momentos maravilhosos, regados à paixão. Os problemas. Os ciúmes. Os medos e as crises, as brigas, as ausências, os planos, os sexos e carinhos, os beijos, abraços, risadas e lágrimas. Tudo isso dentro dos conformes das relações afetivas. Foram três anos em que cresci incrivelmente, mudei pra caralho e descobri uma forma de amar que nunca, jamais poderia ter pensado que era possível existir, mas que me preenchia de uma forma confortável, segura, aquecida. 

Eu poderia começar a escrever esse texto de um milhão de jeitos diferentes e, no entanto, eu acho impossível escrevê-lo bem, porque a vivência do luto do fim de uma relação sempre me foi um processo muito doloroso. Já escrevi isso antes, sobre ser manteiga derretida, sensível demais e essas coisas todas. Obviamente que sei que a vida segue, que essa dor vai passar, que vai melhorar. Eu acredito nisso. Acho que passamos pelos finais de formas muito dolorosas, por vezes mais do que deveriam, e sofremos demais, sentindo a ausência da pessoa, a concretude de um final onde alguém vira "ninguém". 

Mas ando sofrendo também porque acho que vivemos e experimentamos o "fim" sem necessariamente precisar passar por isso. Estamos tão acostumados a um modelo de se relacionar, aprendemos desde tão novos o que é amor, namorar, casar, ter amigos - as caixinhas prontas do que são as relações. Ai começamos a nos relacionar e vemos que, na vida real as relações por vezes não cabem em uma caixinha só. Elas se misturam, transbordam. Presos às concepções prontas por vezes acabamos relações, brigamos, perdemos pessoas que nos são importante porque elas não necessariamente "cabem" no padrão. E isso aprendi me propondo a ter uma relação aberta - e a discuti-la muito: com meu antigo companheiro, com amigos, com leitura e aprendizado. 

Não queria falar do término em si. Não agora. Pensei nesse texto como uma reflexão política. Mas ela é muito longa, é uma reflexão que consome e que, misturada ao aperto no peito que venho sentindo se torna algo impossível para fazer de forma qualitativa. Mas preciso tentar. De alguma forma é preciso esvaziar a mente. 

Eu penso que, sendo as relações uma construção, abertas ou fechadas dois de seus pilares devem ser a comunicação e a sinceridade. É preciso ser sincero com seu companheiro todo momento. Não sentir medo de discutir, ter conversas, fazer reflexões conjuntamente. As regras e limites se estabelecem assim. Os planos também, os desejos... Pode contar seus sentimentos e suas verdades ao outro, a quem elas tocam, é fundamental. Uma relação aberta, por exemplo, significaria que não está colocada a impossibilidade de haver novas paixões vividas pelos seus sujeitos, fora dessa relação. 

Poder conhecer pessoas novas, experimentá-las e vivê-las, essa é uma das questões fundamentais do amor livre. É longe de ser perfeito, mas é a utopia procurada, o não se oprimir pelo que se sente, a liberdade em poder falar sobre isso, em poder entender esses sentimentos. Penso que é algo por ai. Penso também que é assim que se lida com os problemas e também com o cotidiano da relação. Ela é compartilhamento, é planejamento, é vislumbrar o outro no futuro. Isso eu entendi há pouco tempo: vislumbrar alguém no futuro. Nunca pensei que eu faria algo assim. Já prometi amor eterno, mas eram coisas diferentes, hoje eu sei. 

O relacionamento amoroso é entender que a paixão pode acabar ou se transformar. O amor também. É preciso entendermos que as duas possibilidades estão colocadas. A mais fácil de definir é a primeira: as vezes deixamos de amar alguém ou alguma coisa. Isso é normal, é o fim, de fato. O fim que as vezes acontece. O sentimento se transforma tanto e de repente ele vira nada: tudo que é sólido desmancha no ar. Entender isso é doloroso porque muitas vezes não queremos acreditar que alguém deixou de nos amar, principalmente quando ainda o amamos. Temos que perceber que não é possível, a partir do que sentimos, definir também o que o outro sente. A relação é uma troca e complementação cotidiana entre o um e o outro. Nossa possibilidade de ação é limitada por até onde somos.

Numa relação aberta, no entanto, é mais fácil vermos o processo da segunda possibilidade: a transformação do sentimento. Quando (des)construímos a relação vamos percebendo que nossos sentimentos também vão mudando, assim como nós também vamos mudando - abrindo mão, nos posicionando, nos doando, recebendo... O tempo todo a relação está se transformando. As vezes a passos lentos, as vezes com rupturas e movimentos bruscos. Isso não é necessariamente ruim, não deve ser necessariamente nada. É o rio, que vai seguindo seu curso. É o que chamamos de processo, mesmo.

Penso que um dos elementos centrais relacionados à paixão, grande tabu de muitas relações ainda, embora central na nossa sociedade é o sexo. O desejo e apetite sexual e a atração física que sentimos pelo nosso companheiro é determinante na estrutura de uma relação - socialmente e para a maioria das pessoas (mas não todas). As relações começam a ruir quando o sexo se torna um problema. Ou ainda, (a falta de) sexo é um sintoma de que algo vai bem. Acho que essa pergunta é meio "quem vem primeiro, o ovo ou a galinha?". Acho mesmo. Nunca tive sexo como algo central pra mim. Prefiro de coração as vezes sair pra comer, assistir um filme, tomar uma breja do que transar. Já transei inúmeras vezes e pensei "ok, eu poderia estar...". 

As relações abertas permitem aos indivíduos a possibilidade de variarem de parceiros sexuais, conhecerem universos novos, experimentarem, essas coisas. Nada perfeito, de novo. Devo cair as vezes numa percepção errada de romantização do "amor livre". Não o romantizo, tenho pra mim que ele me fez sofrer tanto quanto uma relação fechada: insegurança, machismo, etc. Mas acho que deixarmos sempre aberta a possibilidade de poder experimentar sexos novos - nossa eterna busca, me parece - é mais vantajosa às relações, embora não garanta que elas irão durar mais, tampouco. Acho que esse problema foi grande na minha experiência pessoal.

É preciso, numa relação aberta se propor a ver as coisas do mundo  das gentes de outro jeito, e eu tentei fazê-lo ao máximo que pude sozinha. O outro também precisa se propor, e ambos precisam se ajudar. Isso é chato, pois da muito trabalho e nos desgasta.  Há momentos muito mais oportunos para se ter uma relação aberta, tipo os de sair e ficar com outras pessoas, Mas há também as partes "chatas", trabalhosas e sofridas - e é aqui que muitas vezes o pólo privilegiado da relação ira se utilizar do seu privilégio de alguma forma para reproduzi-lo (essa teimosia é um dos lugares onde os opressores mais cansam os oprimidos). Age-se por conveniência individual e conforto. É fácil esquecer, nesses momentos, do outro. 

A outra questão aqui é mais ampla ainda. Quando se relaciona aberto se relaciona com terceiros. A ficante do companheiro, vice-versa. Novas pessoas, novas formas de ver o mundo e novos princípios. Alguns topam, outros não. Ai também depende de nós: quanto queremos. Tentamos evitar a comparação, lutando para não reproduzir aquela lógica que nos destrói, enquanto sujeitos, de que somos todos substituíveis (do ponto de vista de produção, sim, mas da vida, jamais!) e comparamos nossos companheiros, companheiras, amores, amigos, a fim de anulá-los. Esse é melhor, essa me da isso. A balança as vezes é necessário, mas as pessoas não são substituíveis. Elas podem acabar, o amor acaba, a morte chega. Elas podem se transformar. Mas elas importam. 

Eu acho que, a pergunta que move a gente é o quanto estamos dispostos a dar, o quanto amamos estar com aquela pessoa sem que ela seja algo nosso apenas, uma propriedade. O quanto queremos que ela fique perto, não importa o que. O quando ela poderia ficar, o quanto seria permitido ter uma relação de determinada forma com alguém, em um outro mundo. Porque é isso, no fim. Apontamos para um outro mundo. Desenhamos a utopia do amor livre, das infinitas formas de amar, das infinitas formas de se relacionar, não degeneradas pela perversidade de uma ideologia individualista, meritocrática, opressora, e seguimos caminhando até ela. É a utopia da transformação, não há dúvidas. 

Esse foi o espinho que deu pra arrancar hoje. A possibilidade de transformar um espinho em alguma outra coisa. 

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