Eu e a depressão
A primeira vez que senti algum tipo de tristeza imensa no peito, que chorei de soluçar por longos minutos sem conseguir parar e que senti que o ar não conseguia preencher meu pulmão todo foi há 4 anos atrás. Naquela época, em meio às manifestações do passe livre e à militância frenética eu não consegui entender o que existia dentro de mim e depois de uma tentativa de cura superficial, no final do ano e me sentindo "renovada", toquei o barco. Desde lá, senti em diversos momentos da minha vida essa dor e tristeza no peito, a falta do ar, o sentimento de vazio, que em alguns momentos vinha mais forte e durava mais tempo e em outros desaparecia, quase como um milagre.
Somado a isso, sempre fui relutante em tomar medicamentos e em depender diretamente da indústria farmacêutica. Não queria condicionar a minha felicidade em existir no mundo ao uso de medicamentos, principalmente medicamentos controlados. De certa forma eu sequer acreditava que era possível alguém ficar doente, doente assim que não fosse algo "tradicional" de se adoecer: câncer, pedra no rim, problemas cardíacos, coisas assim. Depressão, nesse mundo objetivamente horroroso, não era uma possibilidade pra mim, porque significa fraqueza, frescura e falta de sofrimentos reais, os crus da vida cotidiana. Eu não podia estar doente, portanto.
Vem e vai em ondas. Não adiantou em nada eu repetir para mim mesma que estava bem, que estava tudo bem e que vai ficar tudo bem. Quando eu comecei a experimentar mais de perto os crus da vida cotidiana e quando as pressões da pós graduação começaram a surgir eu comecei a sentir que eu estava me desfazendo. Cada dia e cada semana começaram a ser experimentados quase como uma provação: é preciso chegar até o final desse dia, pois, talvez, amanhã seja um dia melhor. Mas o dia melhor, essa utopia, parecia se desenhar mais e mais distante, e os dias piores começaram a ser muito piores.
Eu não sei quando exatamente isso aconteceu, mas sei que o vazio que se abriu dentro de mim foi tão grande que ele simplesmente começou a engolir tudo de mim. As vontades, as risadas, as conversas com as pessoas queridas, os amores, o tesão, a militância, a fé. Os dias se tornaram insuportáveis, pesados, preenchidos apenas pela expectativa (e ansiedade tóxica) do dia seguinte que poderia (deveria) ser melhor. Eu não queria viver, pois não sentia propósito nenhum nisso. Não sentia, além de tudo, vontade. As coisas ao redor se transformaram em coisas também vazias, sem porquês e eu não estava interessada nelas. E em ninguém. Todos os dias eu chorava. Todos os dias eu choro. A dor sai, ou então penetra mais, mas por alguns minutos chorar me permite colocar pra fora, sem ter que verbalizar, a podridão terrível que cresce dentro.
Assumir a necessidade de procurar ajuda médica e, então, me submeter a um tratamento, com medicamentos, está sendo muito difícil. Tenho vontade de boicotar os remédios, tenho vontade de ficar bem logo, desejando intensamente que eu possa voltar a ser eu. Porque eu sinto que não sou a mesma pessoa, que isso me transformou. Mesmo quando eu estou bem, mesmo assim existe um aperto no coração, um nuvem carregada, um peso dentro do peito. Esse passo foi importante e não foi fácil. Precisei dar a mão a quem pudesse segurá-la e assumir: eu preciso de ajuda. Eu quero ajuda. Eu sinto que poderia morrer, mas eu gostaria de viver. Eu amo trabalhar com educação, mas não consigo colocar os pés dentro da escola. E todas as outras contradições que me esmagam. Eu preciso de ajuda, eu disse. Foi necessário verbalizar para mim mesma, para outras pessoas: eu estou doente e, a partir daí, assumindo essa condição, começar uma longa jornada de tratamento.
Às vezes, em crises, eu sinto como se houvesse alguém dentro do meu coração (do físico mesmo, esse que bate no peito) tentando sair dali, dilacerando o tecido, a carne. Sinto como se estivessem rasgando meu peito e a dor é insuportável. Nessas vezes junto eu sinto uma ansiedade, a angústia - um sentimento incongruente, de algo ou alguma coisa que aconteceu, pode ter acontecido, vai acontecer com alguém ou comigo. Eu sinto medo, e me sinto imobilizada. Esses são os piores dias. Absolutamente nada é capaz de me distrair, e a dor me dilacera de forma totalizante. Ela toma conta de mim, me paralisa - e eu desejo morrer. É físico. Eu nunca pensei que pudesse ser físico, que pudesse afetar assim, que se tornaria incontrolável dessa forma, mas é. Nesses momentos, quando estou com alguém ou falo com alguém, sempre me dizem para respirar, respirar, respirar... Ajuda. Me dizem também para não pensar coisas ruins, não sofrer por antecipação e desesperadamente eu respondo que eu estou tentando. E eu tento.
Às vezes, em momentos de tranquilidade, eu me sinto feliz. Sinto que estou bem, que está tudo ok. Sinto que é possível ser feliz, encontrar sentidos pra vida, lutar, trabalhar, enfim viver...
E na maior parte do tempo eu estou tentando o máximo que eu posso. É o que eu posso dar. A dor no peito é constante. Em alguns momentos, se pudesse definir assim, racionalmente eu estou feliz e quero estar feliz e, mesmo assim, a nuvem carregada está ali. Um bloqueio, um peso morto. Nesses momentos a dor está controlada, administrada, principalmente quando estou medicada, o que ajuda muito e de verdade, mas ainda assim é difícil. Eu sinto vontade de estar perto das pessoas de quem eu gosto ou mesmo de sair e dar uma volta, mas ao mesmo tempo eu não quero conversar com ninguém. Eu sinto que quero ficar junto das pessoas e ao mesmo tempo sinto que quero ficar absolutamente sozinha. Eu sinto que estou feliz, mas ao mesmo tempo eu não consigo sentir essa felicidade, porque eu estou triste e essa tristeza é a única capaz de inundar esse vazio - agudo. Eu sinto que quero ser feliz, e ao mesmo tempo isso me parece impossível.
Eu me sinto cansada. Eu me sinto frustrada, pois não queria estar assim, sentir assim, ser essa pessoa. Eu sinto que estou decepcionando a mim mesma e às pessoas ao meu redor. Sinto que preciso ficar bem logo, pois ninguém é paciente por tanto tempo para lidar com pessoas nessa situação. Eu me forço e esforço e me cobro e recobro: você precisa ficar bem. Esquece essa dor. Mas essa dor não se esquece e demanda de nós uma paciência tremenda: de nós, com nós mesmas; de nossos amigos, familiares, companheiros(as) com a gente; de nosso local de trabalho; de nosso local de estudo. Paciência - parte fundamental da cura, acho eu.
É muito difícil verbalizar essa doença. É muito difícil colocar em palavras aquilo que estamos sentindo tão dentro de nós. É mais frustrante pra mim porque eu sempre me achei muito boa com as palavras e, ainda assim me vejo em diversos momentos sem conseguir explicar e dizer o que estou sentindo. Em geral a síntese que encontrei foi o choro e a verbalizar a dor: está doendo. Eu estou sofrendo e não queria sofrer assim. Eu sinto como se meu peito fosse explodir, e eu não consigo respirar. Mas isso não parece suficiente quando confronto as palavras com os sentimentos. Parece mesmo que elas são incapazes de dar completos significados às coisas. E por isso se torna mais difícil para explicar para as pessoas o que é isso, porque é difícil para si próprio entender.
Eu penso que andei alguns passos pra frente, mas sei que ás vezes preciso recuar e então recuo. Volto, respiro, deixo a dor escapar o máximo que posso. Às vezes eu sinto que preciso me sentar e descansar, então eu me sento e descanso. Às vezes eu sinto que consigo avançar um ou dois passos, então eu avanço. Mas é uma jornada longa. Não sei se é possível vencê-la, mas sei que sem tentar e sem aceitar essa ajuda e sem ter essa paciência a entrega é a única coisa que se desenha como possível, e eu não quero me entregar.
Que o mundo fique mais doce e que possamos continuar tentando.