Afinal, o que tem a ver o Brasil com a Finlândia em matéria de educação?

Ultimamente tenho visto muitas pessoas compartilharem críticas ao sistema educacional brasileiro respaldadas em comparações com países europeus como a Finlândia, que de fato é um país que se tornou, principalmente com muita publicidade, referência no tema da educação com o seu sistema “inovador”. Pensando nessas críticas resolvi ler algumas matérias sobre a menina dos olhos finlandesa, isto é, como funciona a educação por lá. A ideia era ler artigos de pesquisa, mas o tempo é muito escasso. Assim, organizei aqui principais pontos para trazer ao debate, com as referências bibliográficas ao final para quem quiser dar uma olhada. Então vamos lá.

A primeira coisa importante é nos lembrar que existe alguém (pessoa ou instituição ou ambos) que produz a narrativa da “melhor educação do mundo”. Os critérios que classificam, em qualquer situação, são construídos a partir de algum(ns) referencial. Sendo assim, quando se fala sobre a melhor educação do mundo ser a da Finlândia, o referencial/critério que legitima essa frase vem primeiro da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico que conta com 35 países membros: o Brasil não está entre eles, nem os países da América do Sul. Alguns de seus membros são: Estados Unidos, Austrália, Bélgica, Israel, Espanha, Noruega, Coréia do Sul, Canadá, etc. Ela foi criada nos anos 1960, seguindo linhas políticas do Plano Marshall e substituindo a antiga Organização Europeia para Cooperação Econômica e sua sede localiza-se em Paris, na França. Ela funciona como um fórum mundial que visa discutir e promover políticas públicas entre os países mais ricos (seus integrantes inclusive) auxiliando em seu desenvolvimento e expansão econômica numa perspectiva de crescimento e estabilidade dentro da economia capitalista global.  

A OCDE criou um exame chamado PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos – que visa medir o nível educacional de jovens de 15 anos no mundo inteiro por meio da realização de provas específicas de leitura, matemática e ciências. A organização realiza esse exame a cada três anos e constrói um ranking internacional com os resultados. No nosso caso, Brasil, participamos como convidados dos últimos três exames através do INEP – que é responsável pela aplicação das provas no país. O último exame foi feito em 2015 e divulgou que o Brasil havia caído no ranking. Foram 70 países examinados, e o país ficou em 63ª em ciências, 59ª em leitura e 66ª em matemática.
Pois bem, dito tudo isso e não tentando fugir do foco, a Finlândia nunca sai das cinco primeiras posições (apesar de ter apresentado uma tendência à queda de posições comparativamente nos últimos exames realizados). O foco, no entanto, era falar sobre aspectos práticos que caracterizam a educação finlandesa, e consequentemente sua diferença com a nossa educação aqui (pensando principalmente a realidade que vivo, que é a do estado de São Paulo).

Na Finlândia a educação é entendida como um direito fundamental do cidadão, dever do Estado (e do governo que assume). Assim, esse é o quarto país no mundo que mais investe dinheiro em educação por pessoa. A educação é obrigatória dos 07 aos 16 anos – algo um pouco diferente daqui.No Brasil temos lei que discutem a obrigatoriedade da educação inclusive nos anos iniciais da primeira infância (3 a 6) e nossos alunos terminam o ensino médio regular com entre 17 e 18 anos. Lá o material escolar e todo gratuito e os municípios também garantem transporte escolar gratuito a todos os alunos, diferente daqui, que em alguns casos garante-se apenas o passe. A escola pública também fornece o material escolar gratuito (ainda que muitas vezes falte livro didático, por exemplo), enquanto que as privadas não.

O primário é composto da 1ª a 6ª série e o secundário da 7ª à 9ª. Daí vem o Ensino Médio. 

A educação é “regida” por sete princípios, resumidos em: igualdade (das escolas, dos pais, dos alunos, etc); gratuidade (incluindo as refeições, passeios a museus e atividades extraclasses, transporte, material); individualidade (no sentido de que cada aluno possui um plano individual que é estipulado entre ele e a escola, o que pressupõe toda uma rede de apoio acadêmico para além dos pais e dos professores diretos); Educação prática; confiança (e autonomia pedagógica do docente); voluntarismo (ou seja, estuda quem quer estudar); independência (aprendizado da autonomia e da independência para a vida adulta).

Outra coisa, decorrente dessa visão sobre a educação, é a valorização do profissional (principal) ligado ao tema: o professor. Os docentes possuem prestígio na sociedade, são valorizados em capital financeiro e capital simbólico. Por fim, as escolas fazem parte da realidade cultural das famílias, o que significa muito mais espaços de participação da comunidade familiar nos processos de discussão e acompanhamento das pautas sobre educação.

A primeira coisa apontada pelos estudantes e professores finlandeses em visita à escolas (privadas) no Brasil foi que lá praticamente não há escolas privadas. A maioria massacrante das escolas é pública, e por isso a maior parte da população não paga (e não precisa pagar) para estudar. Outra coisa importante tem a ver com a jornada de estudo. As escolas aqui funcionam, em geral, em três períodos: manhã, tarde e noite. O horário da manhã inicia-se às 7:00 e termina 12:20. O da tarde inicia-se às 12:40 e termina às 18:00 e a noite começa às 19:00 e termina 22h50 mais ou menos. Na Finlândia os turnos da manhã começam por volta das 8:30 em geral, e vão até as 15h00 ou 16h00. Os alunos lá, por conta desse período extenso, possuem mais intervalos do que os daqui. Aqui ficamos entre um e dois intervalos, de 15 a 20 minutos de duração, durante todo o período de aula. Lá, os alunos possuem intervalos entre aulas, em geral de 15 minutos.

Em relação a como o trabalho é executado dentro da sala de aula, a metodologia/método, a Finlândia não difere muito do Brasil. O diferente é que existe uma tendência maior em se incentivar o trabalho independente, que poderíamos associar com a metodologia de projetos, discutida incansavelmente pela literatura da pedagogia no Brasil. Esse método consiste em dar temas aos alunos que trabalham realizando pesquisas, utilizam o espaço de suas casas para isso e a escola/professores como um “suporte” na execução de um determinado projeto.

A Finlândia, como o Brasil – em se tratando principalmente das universidades públicas – também institui exames de admissão (vestibular, como chamamos) para que os alunos saiam e concluam a escola básica e ingressem no ensino superior. No decorrer da formação dentro de uma escola, em geral existe uma tendência em não haver provas, mesmo que existam as provas finais. Algo diferente daqui: aqui fazemos provas a rodo.

Lá a educação é bilíngue. Então, além do finlandês e do sueco (línguas oficiais do país) os alunos indicam uma terceira língua para estudar obrigatoriamente. O inglês é o mais escolhido por alunos do 1º ao 6º ano, segundo dados de 2016. Já no ensino médio existem escolas que oferecem o chamado bacharelado internacional onde todas as disciplinas, exceto a da língua materna, são ministradas em outro idioma, visando a formação de estudantes que ingressem em universidades no exterior. Essas escolas também requerem um exame de admissão para o estudante ingressar nelas.

Lá existe também aquela coisa do “currículo flexível”. A ideia, como propagandeada aqui, é que o estudante pode, já no ensino médio, escolher cursar de forma mais profunda as matérias que ele gosta mais, tendo assim uma certa flexibilidade em montar seu currículo. Assim, por exemplo, se uma estudante escolhe que quer ser médica, ela pode montar o currículo dela com predominantemente (e mesmo APENAS) matérias voltadas para as ciências físicas e biológicas, excluindo a parte de humanidades, por exemplo. Nesse sentido, a carga horária também varia de acordo com a vontade do estudante.

É possível cumprir apenas um núcleo obrigatório, como também é possível fazer estudos mais aprofundados. Por exemplo, em física há apenas uma matéria obrigatória, mas os estudantes podem escolher cursar até 20 matérias relacionadas a essa área. A própria disposição das matérias não é a mesma daqui. Há, claro, indicações de habilidades e conteúdos que os alunos devem aprender (por vezes indicadas em matérias: matemática, gramática, etc.), mas existe muito difundida a ideia dos TEMAS como norteadores dos processos de aprendizagem, através dos quais os alunos adquirirão algumas habilidades e competências.

A Finlândia também investe em tecnologia para os espaços de sala de aula e para os métodos de aprendizagem. Lousas interativas e inteligentes, ipads e computadores, impressoras 3d. Além, claro, da arquitetura das escolas. A arquitetura, a construção do espaço físico da escola (espaço de aprendizagem) é feita pensando na otimização da educação, isto é, há discussões teóricas importantes por trás dos projetos e construções das escolas: espaços multimodais, paredes transparentes, lugares abertos e iluminados, fim das paredes e divisórias, cadeiras e bancos confortáveis.

Bem, obviamente que esse assunto é inesgotável, e por mais que minhas mãos estejam coçando para fazer comentários comparativos e de análise desses elementos todos, não vai ser hoje o dia. De todo jeito, e descrente da educação (principalmente pública) diante do cenário de cortes de orçamento, privatizações e reformas do ensino médio e trabalhista, penso que é perigoso para nós reivindicarmos o sistema finlandês no Brasil, isso porque me parece que existem muitas coisas desse modelo que não nos cabem: seja porque não somos a Finlândia (óbvio!) seja pelas realidades geográficas, culturais e sociais do nosso país, seja porque nem sempre o país rico bam bam bam é o que tá certo de tudo, né? Não vemos as pessoas reivindicarem Cuba ou Bolívia que em seus sistemas educacionais conseguiram de forma valente (por falta de melhor palavra) erradicar o analfabetismo, um velho fantasma que nos assombra no Brasil, e esses países sequer são considerados nesses rankings, apesar de muitas pesquisas também os apontarem como referência em educação. Toda e qualquer análise e reivindicação de modelo demanda de forma indispensável uma contextualização: história, política, social e cultural, para dizer o mínimo.

Também me fica um pouco a impressão de que quando reivindicamos a Finlândia fazemos de forma irrestrita, como se fosse viável exportar um modelo tão único e simplesmente aplicá-lo aqui. Acho que isso faz a reforma do ensino médio, por exemplo, e a reforma é ruim pra a educação no nosso país. Não é que não precisemos, não é que seja ruim o aluno ter mais tempo de escola num sentido de aprender mais com ela, a autonomia é importantíssima de ser aprendida e construída. O que ocorre é que essa autonomia não existiria da mesma forma aqui, porque nossa sociedade é formada de formas distintas da finlandesa. Enfim, separar o joio do trigo; analisar criticamente esse modelo, ver seus aspectos positivos e negativos no que diz respeito à educação aqui. 

Ao mesmo tempo em que é importante ter em mente duas coisas, duas coisinhas que me parecem primordiais e também indispensáveis quando reivindicamos o modelo finlandês e que, aí sim, acho que podemos reivindicar sem dó de ser feliz: o primeiro é como se apóia em diversas teorias progressistas e revolucionárias de educação e pedagogia, e que aqui no Brasil também discute-se muito e muito e incansavelmente, mas sua efetivação prática fica restrito a poucas escolas (e em geral privadas) por conta de uma série de impedimentos - políticos, ideológicos e econômicos; e, claro, o tanto de investimento público que se faz na Finlândia em se tratando de educação. Não adianta querer Finlândia, querer subir em ranking se não se investe em educação (pública!) e tudo que se relaciona a isso: escola, professor, funcionário, material, etc. Assim, é óbvio que a Finlândia vai ter muito mais espaço para desenvolver sua educação, né? Numa sociedade capitalista, onde o dinheiro é o principal recurso, essa é a verdade inexorável (e que nenhum político que defende a reforma, por exemplo, nos conta).

Fontes:








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