O que é a identidade que se destrói e se recompõe?


Há muito tempo atrás, no meio de um monte de dor amontoada e do término de uma relação de enorme importância me peguei no turbilhão duma mudança de casa, de cidade de ritmo de vida. Naquele momento encarei a mudança como uma possibilidade de começar a vida de novo – por assim dizer. Pensava que deixaria tudo para trás, encarando isso como uma dádiva do presente porque afinal de contas se era para acabar que acabasse tudo mesmo. Na época, não me ocorreu muito o que isso iria querer dizer, mas como essas coisas de coração mesmo, o término doeu e me fez escrever uma reflexão, exatamente aqui, destroçada e – viria a saber um pouco depois – ofensiva que me custou algumas coisas, supostamente.

Esses dias essa fuga doeu. Vi uma amiga ter um filho, outra casar e engravidar, vi festas e comemorações e viagens e um amigo se afastar, talvez também pelas causalidades da vida. Pensei que a distância física pudesse explicar a perda desses vínculos afetivos todos, mas ponderei que não era só isso. Quando retornei ao texto que escrevi, senti muitas coisas esquisitas, inclusive vergonha. Acho que o cerne da reflexão não mudou muito – convicta e coerente – porém os caminhos tortuosos do desabafo naquele momento não apontaram para esse real problema. Acho que, de todo jeito, o golpe foi cruel porque se tratou de uma situação de machismo e patriarcalismo muito profunda, que ninguém saberia resolver muito àquela altura – então doeria de qualquer forma.

Hoje, eu entendo que fui a louca. Bem, dessa forma fica sem sentido. Um pouco depois eu experimentei da forma mais profunda o abismo que se criava em mim e que ali já estava nascendo, sorrateiro. Eu enlouqueci, profundamente. Mas isso não me impossibilitou de mais uma vez descobrir que parte daquela dor toda foi cozinhada no derradeiro fim – veja, a escolha da palavra aqui não é aleatória – daquela relação e o que ela virou. Isso porque, além da ruptura brutal com o que costumava ser um bom companheiro, essa ruptura também me levou ao lado oposto de amigos em comum que, para coroar, espacialmente ficaram do lado de lá. Então, eu virei a louca da ex, e ironicamente me convenci disso.

Acho que obviamente isso não houve, essa coisa esquisita de impor escolhas às pessoas sobre qual lado você irá ficar. Mas, estruturalmente isso aconteceu. O texto, além de tudo, causou um certo estardalhaço, do qual eu não teria ou queria ter controle, gerou ofensas incabíveis e uma forma nada madura – porém confortável – de se resolver as dores que ele causou – em todo mundo que poderia estar doído. Eu conservei essa dor compartimentada em mim, repetindo que estava bem porém incrédula e desgostosa – nunca escondi – de como as coisas tinham caminhado e, mais uma vez até então, não visualizava quais eram os distanciamentos que iam se produzindo como um efeito dominó – justamente daqueles: escolha seu lado.

Não sei que conversas eventualmente rolaram. Mas sei que a gente, pessoas, gosta de conversar da vida dos outros, das histórias e de filosofar a partir dos casos empíricos da vida alheia. Sei também que comigo foram poucas as conversas – e até meus amigos mais íntimos e próximos e que de alguma forma “ficaram do meu lado” não pouparam suas críticas a mim e ao todo envolvido, no sentido de achar, com o perdão da realidade que esse desnecessário texto talvez impacte, que não precisava de tanta raiva e desgaste para lidar com tal separação. Amor, desse carnal, já não havia. Talvez, inclusive, amor fraterno também não. Mas acabamos esmagando absolutamente todo o amor – esse ideal – ao ser humano que supostamente sentimos de forma mútua, para cultivar um sentimento que impossibilitou qualquer relação pacífica e, veja só, até indiferente que poderia haver entre nós – mas que poderia, talvez, possibilitar que o desenraizamento espacial de Campinas não tivesse sido a mim também um desenraizamento de grande parte dos vínculos afetivos que construí.

Essa solidão vem me empurrando para um buraco muito fundo pra depois sair. Esse sentimento eu nunca tinha sentido dessa forma, porque gostava de estufar o peito para dizer que a solidão para mim nunca foi um problema. Mas a experiência do coração não diz exatamente isso mesmo. E, claro, em se tratando dum buraco difícil desses, cabe a muitas razões que ele se abra assim. Certamente, fugindo desses sentimentos todos, na fúria penso que deixei de cultivar certos laços que não se auto cultivam. Mas deixei de ser cultivada, até porque em êxodo ficou mais fácil desvincular. Não julgo, não digo que não faria o mesmo – prezo pelo conforto.

Mas o meu desconforto era gigantesco. Porque eu sentia dores e, também, viria a descobrir que estava deprimida. Mas antes de notar esses outros problemas, louca que era, poderia muito bem caber no papel das piores de todas as loucas, a louca em consequência de um homem. Eu pensava e rodava esses pensamentos na minha cabeça tentando entender o que raio teria acontecido de tão errado e a verdade é que ninguém – e nem eu – estava muito interessado em entender os machisminhos pequenininhos dos detalhes, aqueles sutis que nascem entre casais saudáveis e politicamente conscientes, transgressores, feministas, marxistas, leninistas, morenistas, blablablacistas. Até porque, pensar sobre isso, principalmente para mim, era pensar quão frágil era minha estrutura enquanto mulher e minha auto estima – que eu já sabia que não eram tão altas assim.

Eu tirei fotos seminua pra mostrar pra mim e pro mundo como estava bem, bonita e gostosa; transei com um monte de gente pra me sentir desejada e sentir desejo, e ia colando o bandaid cada semana inventando novos amores, enquanto ao mesmo tempo fugia de mim e da reflexão dolorida sobre onde foi parar minha identidade diante de tanta coisa que estava mudando, e diante da experiência que eu tinha vivido – porque maturar essa experiência era cutucar essa ferida que à época eu já conseguia dar um dos nomes: a rejeição e o abandono. Bem, isso ferveu um tempo. Ficou morno, evaporou em partes. As marcas, pequenos sinais, essas vão aparecendo.

O tempo é mesmo o tecido da vida. Três anos depois, entre os altos e baixos da psique humana, as vulnerabilidades do ser, os gatilhos do dia a dia, as redes sociais, e esse assunto cozinhou de novo, obviamente como essa coisa mal resolvida que é – mal resolvida porque escapa absolutamente da minha compreensão entender como vínculo (supostamente real, afetivo, amoroso) se rompe tão abrupta e mortalmente assim. Depois, eu veria que é mais fácil do que eu imaginava, já que estava colecionando esse tipo de situação. Isso, claro, não contribui nada para minha questão filosófica mais importante: como ser uma pessoa melhor a partir daquilo que eu sou? E como transformar aquilo que eu sou em uma melhor versão de mim? A sensação é que eu não posso fazer isso.

E, veja só, tudo isso para chegar aqui. Num paralelo, quase ou talvez mais cruel.

Depois que a relação foi aberta a outras pessoas e experiências sexuais, e já quando caminhávamos então rumo ao buraco negro da nossa vida sexual – principalmente para mim, que não sentia absolutamente nenhuma vontade de transar na relação – comecei a flertar com um cara por um aplicativo virtual. Saímos, nos conhecemos num bar e trocamos um beijo no final, muito gostoso desses de esquentar a bochecha e fazer você voltar sorrindo pelo encontro. Nos falamos depois, mas ambas as vidas estavam corridas então demorou um pouco para a gente se encontrar.

Não vou entrar nos pormenores desse caso, não até aqui. Fato é que saímos de novo e num impulso de vontade topei ir para a casa do cara, embora tenha feito ele me prometer que me levaria de volta para casa naquela noite ainda. Transamos, e a certo ponto conversando mencionei “meu companheiro”. Essa era uma coisa aberta para mim, e eu sempre esclarecia isso para quem eu me envolvia mais. O cara se espantou, ficou incomodado. Achei estranho, porque ele já sabia. Seguimos na cama, e a coisa foi esquentando, mas ele estava meio esquisito. Seguimos, até eu interpelar se ele tinha camisinha e ele responder que não, mas que não precisava. Na hora eu freei a coisa. Ficamos conversando, trocando beijos, mas ele começou a ser incisivo. Aquilo me irritou me deixando furiosa. De repente, senti uma raiva muito grande da insistência dele em transar comigo sem camisinha, inclusive tentando forçar uma penetração “sem querer” enquanto a gente dava uns amassos, não sei se para dizer algo do tipo: escorregou.

Ponto é: nós transamos. Eu estava morrendo de raiva e deixei ele transar comigo. Pois é. O ódio que senti foi tão grande que eu comecei a perguntar para ele, como uma provocação, se ele achava aquilo legal e se estava gostando. Isso ativou alguma coisa naquele cara e a relação foi violência pura. Me senti, na hora, absolutamente revoltada. Ao entrar no banheiro era como se eu estivesse imunda de algo que não podia ver. Há nem uma hora atrás havíamos transado, de camisinha, e tinha sido muito bom para ambos. De repente aquele era o último lugar que eu gostaria de estar e eu me senti uma idiota completa. Além de medo, porque eu entendia que aquilo tinha saído do programado e que eu estava ali sozinha o ódio também começou a me inundar de tal maneira, ficando visível para ele, que não aguentou e me provocou: você está preocupada? Eu não tenho doença. Só não vai engravidar, hein?

Eu desconversei, e informei que iria embora sozinha, mas ele insistiu em me levar porque era esse o acordo. Quando desci do carro dele ele disse, ainda provocativo: é bom você tomar uma pílula do dia seguinte. Você tá preocupada que eu te passe uma doença? Eu não quero que você engravide. Na verdade, faço questão de trazer uma pílula pra você amanhã. Eu desci do carro agradecendo e dizendo que não precisava, porque tomava pílula. Fui fria, distante, e o clima azedou com o cara. Por algum motivo, eu carreguei o mal estar para dentro de casa. Apaguei o contato, bloqueei o cara e torci para não o encontrar mais, e principalmente para ele não aparecer em casa. Meses depois, fiz o exame de DST e me livrei desse fantasma, mas aquela história ficou tão dentro de mim, propositalmente, que me levou um tempo para entender que naquele momento não houve consentimento (parcial ou absoluto) em relação ao coito, e isso meus caros e minhas caras: é estupro.

O impressionante de tudo isso é que eu não pude conversar com meu antigo companheiro e estava envergonhada demais para admitir que havia feito tudo que fiz, porque de alguma forma me sentia muito culpada em ter possibilitado aquela situação de acontecer. Pensei que ao agir de forma agressiva pudesse produzir algum tipo de escudo contra a vulnerabilidade que era estar naquele lugar, naquele momento e naquela condição. Essa foi outra coisa muito incômoda de toda a situação, aquele pensamento que estava explodindo minha mente enquanto eu transava com aquele cara: eu não quero estar aqui, eu só quero que isso acabe logo para eu poder ir embora. Percebi que naquele contexto, negociei com ele o sexo sem consentimento como uma forma de preservar meu corpo que estava vulnerável. Ele estava com raiva, dividido entre tesão e o ciúmes possessivo e machista em descobrir que eu tinha uma outra relação, e talvez em contradição com esses sentimentos, não sei, ele agia comigo transitando entre a vontade de transar e a necessidade de me subjugar, já que na cabeça dele o relacionamento aberto significaria que eu “dava para todo mundo mesmo”.  E, era inacreditável como ele não acessava todos os códigos e retrações corporais, ou até as lágrimas de raiva que eu não contive, e não pôde (ou não quis) ver o que estava fazendo.

Meu corpo, porque sexualizado dessa forma, se tornou um território de dominação e conquista, talvez na ordem inversa. Essa reflexão era inacessível a mim, porque eu não tinha a abertura de conversar com esse cara sobre isso, nem queria. Também não tive a abertura de conversar com meu antigo companheiro, porque estávamos já nesse momento abandonado aos poucos um ao outro, cuidando da própria vida, dos próprios afetos, desenrolando nossos fios e armando nossa bagagem. E por fim não tive mecanismos de conversar comigo mesma, entender aquilo. Deixei para lá, apesar da raiva que sentia do cara ter me perseguido durante semanas depois desse encontro.

Moeu a alma, sabe? Porque me sentia absolutamente esvaziada: de conteúdo, sentido, tesão. Transava procurando algo, mas não encontrava nada. Me esvaziei a mim mesma depois disso, depois de sentir que absolutamente não fazia diferença o que o corpo, os olhos, a palavra oral proferida: assim eu não quero, comunicavam ao meu interlocutor. Alguma coisa em quem eu era, em ser físico e objeto existido, idealmente parecia comunicar outra coisa – e isso era absolutamente o apagamento não só do que eu queria ou não queria fazer na cama, mas do que eu tinha para falar. Do que eu pensava e achava sobre algo. Do que eu sentia e desejava – na vida.

E foi exatamente assim que me senti quando lembrei daquela outra ruptura que se fazia, naquele mesmo período, enquanto eu lutava para ir colocando todos os cacos juntos de algum jeito, algum remendo qualquer que garantisse pelo menos os pequenos passos ali, cotidianos, sem grandes danos. E que pudesse me oferecer alguma coisa para entender qualquer coisa! Porque o único momento em que me manifestei em sentimentos sobre aquilo tudo, um tempo depois, gerou a pá de cal de uma história que deveria ter continuado a existir. Sentia isso, me sentia muito injustiçada porque parecia que absolutamente nada do que eu disse, e teria a dizer, faria qualquer diferença, porque eu não fazia diferença. Eu havia me tornado apenas um incômodo chato, uma peça descartável e um imbróglio de difícil digestão, embora eu também estivesse indigesta.

Bom, como é de se  imaginar, depois de tanto tempo que isso se põe para fora, há que se refletir as coisas escritas de alguma maneira. E ver quais os fins que elas podem ter.

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