Eu não sei o que fazer com todo esse vazio desse luto

Tem algo no meu peito, algo como que sufocando, deixando difícil e pesada a vital função de respirar, isto é, fazer chegar pelo corpo todo o oxigênio, bombear o sangue e fazer a cabeça continuar funcionando. Não é como se minha cabeça não estivesse funcionando, mas é como se ela só cumprisse um determinado tipo de pensamento e, para variar um pouco, durante outro tempo duvidar da realidade que está acontecendo. Eu também sinto assim como um cansaço, no corpo todo, e desde ontem minha mandíbula - especialmente os dentes de baixo - estão num latejar constante e dolorido, culpa do bruxismo, um nome peculiar e aleatório.

Eu sei que o luto é um processo. Sei que a psicologia explicou que esse processo tem suas fases, estágios e essas coisas. Já assisti inclusive um filme que falava, de maneira ácida e debochada, das fases do luto do fim de um relacionamento. Mas é claro que não é a mesma coisa - porque existe uma ausência cuja existência não deixou de existir, de fato , enquanto que a morte além de ausência é a ideia de que nesse mundo que você vive agora e onde viveu com determinado alguém, esse alguém deixou de existir para todo o sempre que você vai viver até deixar de existir também - o que é primeiro, muito triste e doloroso e, segundo, um pouco assustador. A morte, principalmente quando sucede tão perto de nosso mundo afetivo, além de ausência eterna é um lembrete terrível de como nossa existência é absurdamente aleatória e efêmera num mundo como esse. 

Aqui é aquele espaço de toda a reflexão clichê que nasce disso. Só. 

A morte - e o luto de quem fica - é uma demanda enorme de coisas práticas e burocráticas da vida cotidiana. É também lidar, emocional e fisicamente, com a perda irreparável de alguém que amávamos tanto, tanto, e de quem dependíamos tanto, e tanto, que jamais cogitávamos, em nosso viver a vida diária, que essa pessoa pudesse um dia morrer. É quase que um sentimento platônico e ideal de imortalidade de nossos entes mais amados e sobre os quais sentimos que morremos quando alguém morre. É parecido com um murro no estômago, ou uma facada no meio do peito bem no nosso coração, uma espécie de estrangulamento desse órgão que, poeticamente está sempre relacionado ao amor - e tudo aquilo que dele possa derivar, e certamente a dor que atravessa, corta mesmo, quando alguém querido morre. E quando vemos alguém que amamos muito chorar a dor de alguém que lhe era querido e que morreu. Eu sei como é isso, eu já senti um lado, agora vivo esse outro. Choro uma morte, sinto uma perda - e vejo também alguém muito querido sentir essa dor. 

Tento encarar que, para lidar com o sentimento do medo de que você pode morrer a qualquer momento, é preciso uma certa dose de ceticismo e normatização - talvez tenhamos, nessa cultura em que fui criada e vivo e para onde olho, significado demais nossa existência, nossa história e então a morte se torna algo pesado, temível. Talvez qualquer outra coisa. Nesse momento peço ajuda principalmente àquele senhor, Saramago, para quem a morte dos humanos, "uma ridicularia de sete milhões de homens e mulheres bastante mal distribuídos pelos cinco continentes", "é uma morte secundária, subalterna, ela própria tem perfeita consciência do seu lugar na escala hierárquica de tânatos, como teve a honradez de reconhecer na carta enviada ao jornal que lhe havia escrito o nome com inicial maiúscula", no livro as intermitências da morte.

Do outro lado, apesar disso, isto é, dessa dor e de lidar com o luto, o buraco de dor que a morte deixa em nós, que ficamos, não consigo me livrar assim. Eu travo. Busco desesperadamente qualquer tipo de explicação espiritual, mística, algo a mais que rege e influencia em nossa vida material nesse plano, nesse planeta chamado Terra, corporificado nesse ser de agora, Julia, para qual sabe-se la quais planos o universo e tantos outros seres e realidades que com ele interagem e influenciam, tenha elaborado para essa vida minha aqui agora - e das pessoas que se relacionam como e das que não se relacionam e assim sucessivamente. 

Penso que, no limite, tudo é possível e por isso um evento tão contra-senso, ilógico e inacreditável como essa morte tenha algum tipo de explicação afinal de contas. De outra maneira, não é possível entender ou mesmo aceitar esse tipo de coisa, que nos deixa tão putos da vida a ponto de profanar contra todas essas forças, Deus, nada misericordioso - ou o que quer dizer afinal de contas ser misericordioso? E questionamos: por que você fez isso, parece muito injusto. E sabemos o quanto fica um pouco mais fácil, ou não, enfrentar essa dor. E o que dizer então para alguém que você ama que está passando por isso? Tudo vai ficar bem? 

E ela diz: é, eu sei que vai. E bem, em algum momento, pela lógica das coisas como aprendemos pelos tantos exemplos que vivemos, tudo vai ficar bem. Mas enquanto não estiver, como fazer para amenizar a dor? Torná-la suportável? Vivível? Para acostumar com a não existência, a eterna ausência, a pequena sombra do medo e das incógnitas que essa morte gera? Da energia necessária, fisicamente, para juntar as coisas todas, separar as doações das coisas a serem jogadas fora, saber quais são as memórias físicas que vale a pena guardar e aquelas das quais devemos nos desfazer. Saber organizar um novo cotidiano, uma realidade que, pouco a pouco, vai substituir aquela outra antiga, da qual não é mais possível provar - o gosto da comida, o brilho no olho diante de uma história, o perfume do cabelo e o macio do abraço, a paciência e resiliência da escuta - aquelas todas coisas dos dias bons, porque também havia os ruins. Mas tudo bem, havia também os mútuos perdões e, portanto, os tantos espaços para errar, magoar e consertar, porque afinal de contas tínhamos todo o tempo do mundo para aprender.

E, sim, aprender exige muito tempo - mas então também percebemos que a morte, uma certa ruptura do tempo daqueles que ficam, nos atravessa de aprendizados vários, várias coisas que precisamos entender e refletir, em tão poucas horas e dias. O que ela pode ensinar então, anciã e mestre velha, tão velha, agora no lugar daquela aprendizagem cotidiana que a existência proporcionava. 

E, então, as crises de choro, pelas trombas d´água que, inevitavelmente, irrompem em nossos corações quando pensamos na pessoa e então tudo fica absolutamente impossível - e costumamos descrever como um buraco no peito, angústia, o atravessamento da alma, o sufocamento, o estrangulamento do coração e a alma, cansada, quase esgotada. E, então, ela vai embora 

Lembramos das coisas que continuam, tentamos pensar racionalmente que é preciso organizá-las, porque a vida funcional, capitalista e real continua rolando - o tempo não pára - então é preciso trabalhar, limpar a casa, lavar a roupa, organizar o calendário, ir aos médicos e fazer os exames, ir trabalhar de novo, fazer alguma coisa para comer, ser saudável, ver algum filme para não enlouquecer, estudar e trabalhar mais uma vez, pegar o metrô, deslocar-se pela cidade, resolver as funções, organizar a viagem, fazer comida, ir ao mercado. E é preciso também ajudar na mudança, fazer a mudança, guardar os livros, empacotar os enfeites, fazer as malas, ir trabalhar, guardar dinheiro. 

Escutar uma música. 

Poder sorrir um pouco. Talvez se distrair vendo outro filme, uma série. Um livro. Ser atravessado de novo e de novo. Se sentir culpado - lidar com a culpa de continuar existindo, de talvez se algo tivesse sido feito diferente aquela pessoa estaria aqui. Foi culpa minha. Duvidar das felicidades, cobrar-se só os momentos ruins. Culpar-se de novo. E de novo, e de novo, de novo, de novo. Sentir-se eternamente culpado. Querer viver melhor, ser melhor. E essa transição gigante entre um e outro, em coisa de horas. E a sensação de ser egoísta, de querer com todas as forças que aquilo não estivesse acontecendo, de sentir que isso pode não ser real...

Sabe? Às vezes parece que isso não é real. Eu me pergunto: será que isso está mesmo acontecendo? Alguns poucos segundos depois eu penso: sim, está. É preciso ser forte, ser uma muralha e fortaleza, ainda que com as portas e janelas bem abertas. Eu sei, Gioconda. É preciso permitir-se a dor, o sofrimento, sentir-se assim - e é preciso mesmo assim continuar andando. Manter algum tipo de serenidade - respirar fundo, ter calma diante do pânico, da tragédia, do congelar do sofrimento, aquele tipo de sofrimento impossível, que parece que nunca mais vai embora. Mas vai.

Eu queria saber conseguir falar melhor do que seria esse luto. Eu sabia o que poderia escrever sobre o que eu acho sobre o que a gente acha que é a morte - e como nós lidamos com isso, essa sociedade aqui que eu vivo, colonizada, capitalista, cristã em seus valores morais e espirituais predominantes, branca, européia, racional, iluminista - essa mistura toda. Eu poderia falar sobre isso, porque essa é uma das poucas coisas boas sobre o que eu me formei para ser, professora, antropóloga, sociologa, feminista, bláblábla. Eu saberia falar sobre como nossos rituais funerários são uma espécie de prolongamento da dor e do sofrimento, um ressaltar de tudo ruim que está acontecendo e que estamos sentindo naquele momento, ao invés de uma celebração das coisas boas e maravilhosas e do amor que fica e continua. 

Mas eu não consigo falar sobre como é lidar com o luto - porque eu sinto exatamente um aprisionamento e incapacidade de me mobilizar que só de vez em quando se rompe, me permite algo, antes de novamente me pegar pelos pés e virar de ponta cabeça até tudo ficar bem tonto e confuso. E eu poderia pensar: talvez passar pela dor ferrenha de uma só vez, logo de entrada, pudesse ser uma espécie de vacina - sinta logo tudo isso ai de dor, tome essa cacetada de uma vez só e jajá fica melhor - ainda que não dê para saber que horas esse jaja vai chegar. 

E isso poderia continuar e continuar infinitamente. É muito difícil pisar nesse terreno - muito difícil entrar nesse clube de pessoas que perderam alguém muito, muito querido. Alguém imortal em nossa mente eterna de criança cujo amor vai estar sempre ali materializado em alguém que acolhe, perdoa, ensina, ama, doa, cria, faz, sustenta. Esse tipo de amor que não podemos nos dar ao luxo assim de sair perdendo por ai, enquanto por aqui transitamos. Aquele buraquinho que fica e que vai desmanchando a gente pouco a pouco e vamos percebendo que sim, talvez não doa mesmo daquele tanto, mas ainda assim falta algo onde aqui agora tem esse pequeno buraco que eu tento nutrir de lembranças, memórias e que capenga capenga vai fazendo parte de quem eu sou.

Eu acho que o luto é isso então. Sem querer definir nada, talvez o ponto um, é a paciência. De lidar com as coisas que quebram e, talvez, não funcionem mais do mesmo jeito que funcionavam antes. De entrar na sala e sentir uma pequena fisgadinha quando não tiver mais ninguém sentada no sofá. De ansiar em algum momento aquela mensagem de oi, bom dia, todo santo dia, de rotina seguida passo a passo, ainda que as vezes irritante.É, é tudo isso ai de novo, e de novo. 

É  a repetição, talvez. É isso. 

Respira. 

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