carta
"Querida Aurélia,
Tem feito um frio anormal por aqui. Confundo muito se pensar é bom ou ruim pra isso que eu to sentindo, acho que é uma grande dúvida. Talvez, mas só talvez, eu esteja perdendo alguns sentimentos mais quentes.
É verdade, Aurélia, que hoje, enquanto eu te escrevo, eu me sinto mais leve e mais dona da minha felicidade, porque tenho encontrado na escrita uma maneira de tentar dizer o que eu sinto. Mas ao mesmo tempo a sensação de vazio é tão grande que eu fico pensando se posso abarrotá-la de coisas outra vez... A questão é que eu nem sei como começar e também não tenho vontade de procurar. Enquanto chove, enquanto o ar esfria e enquanto eu penso em alguma solução maciça, minha alma tenta desesperadamente buscar uma lembrança. E ela nem é real.
Perdoe-me por isso minha amiga, por esse tom. As coisas ficaram ruins, fugiram das minhas mãos. Fazia tempo, pra ser sincera, mas eu vinha empurrando pra baixo do tapete, tentando esconder aquilo que, por medo, eu não conseguia enfrentar... Fingindo que estava tudo sobre controle. E a queda é livre.
Eu entendo esse frio e essa chuva, eles vem em parte de dentro de mim. Estou pavorosamente destruída. Não tenho mais a credibilidade em mim mesma.
Fico tentando não cometer erros, não machucar pessoas... Fico me esforçando, ao máximo, para ser uma pessoa nova, um "alguém melhor"... Daquilo que falamos, ser mais humana, mesmo, prestar mais atenção. Mas, Aurélia, ao mesmo tempo em que as pessoas são sensíveis elas são tão, tão, tão egoístas. Tenho aprendido, um pouco na prática, uma mão dupla é necessária. Muito da convivência, da vida, é isso. É preciso disposição ao outro, e toda essa balela de antropologia que nunca pensei que fosse servir...Por isso, venho tentando não cometer erros, guardando pra mim tudo aquilo que queria ou até mesmo deveria enfrentar, arranhando o estômago... preferindo ficar calada.
Eu sinto meio como se tivesse parado no tempo, mas ele mesmo não estivesse parado. Você conhece meus medos do tempo, minhas aflições. Ele continua me desafiando, voando, escorrendo entre os dedos, não há nada a fazer. Mas, a mim, parece que estou ali, num lugar fixo onde eu mesma me coloquei, entre o nada que é viver e o nada que é existir. O primeiro por culpa minha. Fico pensando se será possível aquela história de que o tempo cura tudo. Queria que fosse, só dessa vez. Fico querendo que exista uma poção mágica pra apagar - apagar TUDO que passou até esse momento, e então me trazer todas as coisas novas. Aprendizado novo, experiência nova. Alguém novo, eu nova. Essa é minha maneira nova de especular sobre o buraco, esse buraco espinhoso e extremamente profundo que abriu - e abri - em mim. Dilacerado.
Por hora, amiga, eu quero me cobrir do frio e ouvir a chuva - e que até o dilema da escrita desapareça... Não escrever? Eu tenho passado tanto frio! Não minto, Aurélia, eu não estou bem. Mas a favor da convenção social arrisco dizer que sei enganar muito bem. Ninguém precisa saber quão embrutecido - apodrecido - está aqui dentro.... Eu não vou preocupar você, e nem ninguém. É um mal-estar tolo, só pode ser...
Se cuida por mim, minha amiga. Que logo, ao recuperar os pedaços, eu estou de volta.