Eu e o feminismo #1
Há um tempo atrás eu conseguia
defender sem balbuciar que feminismo era sobre igualdade. Eu conseguia, a partir
da discussão sobre ter/não ter privilégios , argumentar com convicção que não
se tratava exatamente de se culpar o sujeito de privilégio numa situação de
opressão por ele ter aquele privilégio em si, mas sim de fazer com que ele se
atentasse ao fato de tê-lo para, então, saber que alguns privilégios são
exercidos em detrimento (opressão) do Outro.
Só que eu mudei. Minha cabeça é
uma confusão, atualmente, mas eu tenho certeza que deixei pra trás essa convicção
que eu tinha. Não que eu ache que cada sujeito de privilégio numa situação de
opressão é culpado – por princípio - por sê-lo – ÓBVIO que não. Eu ainda tenho
plena certeza que sujeitos de privilégio podem ser aliados na luta dos oprimidos,
desconstruindo seus privilégios e se atentando a eles. Bom, isso já da uma boa reflexão:
o que é se atentar e desconstruir privilégios?
Simples. Se numa situação de
desigualdade (social – subjetiva) entre você e um Outro você é acusado de ter
oprimido esse Outro você PARA aquilo que estava fazendo, respira, silencia e reflete.
Se alguém te diz: “acho que você não pode falar sobre isso com tanta certeza
como eu porque você não viveu isso na SUA pele” ou ainda “sua opinião nesse
momento para essa determinada coisa não é necessária” você para, respira,
silencia e reflete. Ou seja, na teoria é um exercício bastante simples – mas a
prática é perversa, é difícil e trabalhosa. Bom, pelo menos é o que alguns
setores privilegiados nos fazem pensar.
Recentemente mergulhei de cabeça
no feminismo. Em todos eles, nas suas mais variadas vertentes e formas de
militância, em diversos textos, relatos, vídeos. Uma coisa eu já consegui
aprender muito bem desse processo: TODOS os homens são potenciais estupradores.
Todos aqueles indivíduos que desde pequeno foram socializados e criados na
nossa cultura patriarcal e masculinista para serem homens (tal qual nós
conhecemos) são opressores – e ai não só em potencial. Eles são. Isso significa
que eu não acredite na possibilidade de um homem ser aliado na luta contra o
machismo? Pelo contrário. Eu não acredito em possibilidade de transformação
radical da nossa sociedade sem ter os homens como aliados. Eu acredito em
feminismo revolucionário. Acredito que homens e mulheres juntos, companheiros e
companheiras, podem e devem transformar radicalmente nossa sociedade – e acabar
com o machismo. Isso significa, no entanto, que a desconstrução do machismo deve ser cotidiana, permanente e, no limite, coletiva.
Mas olha, não vou mentir. Em alguns
momentos é difícil me sustentar nessa crença. Isso me torna possível entender
porque dentro do movimento feminista a misandria é algo tão atrativo – sedutor.
Isso porque são extremamente raras as vezes em que, diante de um processo
educativo do feminismo, um homem consegue compreender a dimensão do problema de
seu ato machista, ressignificar sua existência e suas atitudes – e se desculpar de
maneira sincera e se propor a mudar e combater o seu machismo cotidiano.
O que eu vejo normalmente são homens incapazes de exercer empatia e alteridade. Não existe,
num geral, nos processos educativos (incluindo os escrachos), aquele momento em
que o homem para aquilo que estava fazendo, respira, silencia e reflete. Eu
vejo os homens reclamarem quando alguém levanta uma acusação de machismo contra
eles. Vejo homens problematizando e relativizando suas atitudes, procurando
apoio de outros homens – os seus amigos. Vejo homens manipularem, a fim de
reverterem a situação e se transformarem em vítimas – de exposição, da loucura
das mulheres. Vejo homens entoarem o discurso feminista em alto e bom som,
publicamente, como se isso – esse compromisso formal com o externo – fosse suficiente
e os isentasse de seu machismo privado. Eu não vejo homens, diante da acusação
de um de seus companheiros, ajudarem no processo educativo AO LADO das
mulheres. Eu não vejo homens repreendendo outros homens por suas atitudes –
pelo contrário, eu vejo conivência, panos quentes, o discurso do “não vou me intrometer
nisso, eles que resolvam” ou o afastamento da mulher que denunciou – talvez com
medo de também ser exposto algum dia? Raramente vejo homens se solidarizando
com as mulheres quando estas são vítimas da opressão, sendo capazes de dizer
qualquer palavra de conforto e amparo.
Isso me fez refletir sobre um outro aspecto que talvez
eu estivesse errada e que usamos muitas vezes para convencer, inclusive homens, a se aliarem a nós: feminismo não é sobre igualdade. Feminismo é sobre
desconstrução – é sobre destruição do machismo. É sobre o aniquilamento dessa
forma de opressão. É sobre derrubar e destruir os privilégios que nossa
sociedade da para aqueles que ~são homens~. Porque oras, eu não quero igualdade
com os homens para poder exercer livremente minha sexualidade, não. Não se trata
disso. Eu não quero me envolver com pessoas como se elas fossem meus objetos de
pertencimento, como se elas fossem algo descartável e disponível para o meu
prazer. Eu não quero o direito de humilhar uma pessoa na rua porque eu a achei
atraente. Eu não quero poder gritar com o Outro no meio de uma discussão e isso
ser “de boa”. E quando falamos nessa igualdade, ideologicamente falando, estamos falando de poder exercer nossa existência nos mesmos modelos da sociedade capitalista - quando não se trata disso. Claro, eu quero poder existir e não ser oprimida, quero ter liberdade sexual, não ser violentada e ganhar o mesmo salário que os homens. Mas eu quero tudo isso numa sociedade que não tenha o machismo na sua raiz, numa sociedade que DESTRUA essa raiz.
É por isso que, no limite, o feminismo incomoda tanto os homens
(e, pasmem, mesmo aqueles que são nossos aliados): porque rever privilégios e aceitar lutar
contra o machismo significa abrir mão desses privilégios – ainda que não de maneira definitiva (porque isso só é possível a longo prazo). E eles não querem fazer isso. Os homens
simplesmente não querem perder seus privilégios – e quando eles se sentem
minimamente ameaçados eles escolherão, sem titubear, recorrer a machismo
cotidiano para defendê-los – e depois podem até fazer uma discussão ou reflexão
formal sobre a importância e necessidade do feminismo, mas no fundo no fundo,
no âmago existencial de seu ser, procuram vencer a batalha e manter-se ocupando
seu lugar “de origem”.
Fica muito evidente pra mim que uma das primeiras medidas que o movimento feminista tem que ter é a de empoderar as mulheres: oferecer a elas os instrumentos e meios
necessários para que elas se enxerguem e sejam sujeitos ativos de suas lutas.
Eu acredito que só empoderando as mulheres dessa forma, armando sua luta,
criando uma rede de solidariedade entre elas – de fortalecimento – é que é possível
ser feminista e combater o machismo e a opressão. Isso porque pra mim a luta
contra o machismo tem se mostrado cada vez mais e mais uma batalha ardorosa e
espinhosa – os homens relutam e relutarão em assumir, em se propor a refletir e
aceitar e pedir desculpas de maneira realmente sincera – e só estando muito
empoderadas é que essas mulheres conseguirão dar conta (por todo desgastes
físico e emocional que o machismo gera) de serem sujeitos de sua revolução e
terem os homens ao seu lado como aliados.
Nesse processo serão muitas as vezes que eles
irão destroçar nossa confiança, nos fazer recuar vários passos, nos fazer
questionar sobre nossa própria sanidade, nos expor. Nesse processo por vezes
nós ficaremos sem resposta nenhuma, de nenhum dos lados – e de repente procuraremos
encontrar alguma ação que possa nos atribuir a culpa pelo mal estar gerado. O
silêncio será nosso, enquanto os homens permanecerão com suas vidas funcionando
muito bem. E é pra isso que precisamos nos empoderar – precisamos nos apropriar
dessa força que o feminismo nos gera, ainda que por muitas vezes de maneira
simbólica – para que seja possível travar essa luta cotidiana – e também as
lutas excepcionais – que surgirão nas nossas vidas.
Não estou dizendo que acredito na tese do empoderamento como caminho de exercício e êxito do feminismo. Não estou falando de mulheres alcançando cargos altos em empresas (ainda que isso tenha que ser considerado um avanço no campo da opressão), sendo eleitas deputadas, vereadoras, presidente. Não estou falando desse tipo de empoderamento vazio que, amparado pelo discurso da democracia burguesa e pelo liberalismo, cegam tantas correntes do feminismo - que acreditam que essas mulheres empoderadas (que detém de fato um poder dominante na sociedade) são a materialização de pautas feministas e demonstram que estamos no caminho certo. Eu acho que o empoderamento é político: é formação, é solidariedade entre as companheiras e camaradas de um movimento, partido, organização. É o aprendizado de não aceitar, não se calar.
Pra mim tem ficado cada vez mais
claro que o feminismo não pode ser isso que já está colocado na nossa sociedade
e, por isso, não pode ser sobre igualdade - ainda que eu reconheça que períodos
de transição demandem medidas de transição e por isso seja completamente
favorável às palavras de ordem como “trabalho igual, salário igual” – mas não
podemos fundamentar teoricamente nosso movimento (e consequentemente nossa
prática) nessa ideia de liberdade burguesa que está colocada na nossa sociedade
– e o mesmo vale pra igualdade. Nós não podemos ser a favor da igualdade que
tem como base nossas riquezas, nossas posses, muito menos na liberdade que é
aquela de fazer o que quisermos, por vezes sendo egoístas e individualistas e
passando por cima dos outros. Nosso feminismo precisa ser libertação (e sim,
de mulheres E homens) – precisa ser revolução, precisa discutir a opressão e a
exploração dos indivíduos, a organização e o funcionamento da nossa sociedade.
Ainda que isso signifique uma tarefa MUITO maior.
Nosso feminismo precisa fortalecer as minas. Incomodar os caras que insistem em fechar os olhos para si mesmos e para o mundo. Nosso feminismo precisa ser um outro modelo de sociedade, de organização, de relações interpessoais, de valores. E precisa urgente.