Sobre tantas dores sutis (machismo)
Fiquei amadurecendo
essa reflexão por muito tempo, e acho que mesmo que eu quisesse ela jamais
estaria completamente madura – é que os sentimentos se renovam constantemente e
isso tem influência em nós.
Há um tempo quando eu
já tinha aquela sementinha da discórdia dentro de mim alguns questionamentos
sobre como e porque a sociedade funcionava como funciona já me eram constantes.
Eu não conseguia entender, por exemplo, porque o fato de sempre ter sido gorda
ou de ter um nariz grande servia como pretexto para alguns meninos da escola me
perseguirem e me zoarem constantemente – inclusive porque naquela época ser
gorda e ter nariz grande não eram coisas que me deixavam triste: eu era
saudável, fazia atividades extracurriculares e me sentia bem em poder brincar e
comer chocolate. Quando a zoação começa a ficar insuportável as meninas
procuram aquelas pessoas que são sua referência para serem aconselhadas, e
comigo não foi diferente. Me ensinaram que a melhor forma de responder esse
tipo de comportamento desnecessário e imbecil (pois isso era um consenso mesmo
entre os adultos) era simplesmente ignorar: “mostre que você é superior, ignore,
finja que não é com você”. Se eu olho para trás, durante todo meu período
escolar, eu lembro de momentos em que eu era motivo de chacota e tentava, em
vão, seguir o conselho que me transformaria numa pessoa melhor, superior. Hoje,
pensando sobre isso, percebo que não tem nada mais danoso para as mulheres do
que aprender a ignorar. No fim das contas estavam ensinando a gente a ocupar o
lugar que nos era de “direito” socialmente: a submissão.
Quando eu paro para
olhar e problematizar toda a minha criação e socialização até hoje, descubro
que me transformei numa verdadeira perfeita vítima, e fico pensando quantas
outras mulheres também se transformaram em ótimas vítimas – pessoas completamente
submissas num sistema onde ser homem é ter privilégios incontáveis.
Esses dias me aconteceu
uma coisa curiosa, eu poderia até dizer engraçada. Bom, se fosse há 3 ou 4 anos
atrás talvez não fosse tão engraçada assim, porque eu não tinha a bagagem que
tenho hoje para reconhecer o lugar que eu ocupo, socialmente falando, e mesmo diversas
outras questões subjetivas com as quais aprendi a lidar melhor. Diante de um
encontro com um desconhecido em que não me sentia bem desde o começo, me vi
quase transando com o cara, apesar do (visível) desconforto que a situação me
causava. Quando consegui racionalizar bem o que estava acontecendo e tive
forças para dizer que estava confusa e não queria continuar, percebi que causei
um grande incômodo e desagrado na minha companhia e, ao invés de me sentir
aliviada por sair dali sem ter feito sexo contra a minha vontade (o que na
nossa legislação também é conhecido como estupro) eu me senti extremamente mal
e culpada.
Primeiro, me senti
suja. Me senti completamente culpada por ter, eu mesma, me colocado naquela
situação. Fiquei matutando por horas porque raios fui nesse encontro da maneira
como eu fiz. Depois me senti mal por toda a situação – era visível que eu
estava desconfortável e mesmo assim não consegui fazer nada, e nem minha
companhia pareceu perceber. Me senti suja por ter feito uma coisa que eu não
sabia se queria – e que no fundo eu NÃO queria. Me senti mentirosa e traidora
de valores que eu carrego comigo (a verdade é revolucionária) por não ter
conseguido ser totalmente transparente com a minha companhia, optando por dar algumas
desculpas e ser superficial na minha explicação. Depois disso senti uma
tristeza muito profunda, uma violação muito grande daquilo que eu sou e daquilo
que eu acredito e isso me derrubou dentro de mim mesma, me fazendo sentir muito
sozinha – uma solidão extremamente desagradável. Nela, pude matutar durante
horas tentando descobrir porque raios eu estava me sentindo daquele jeito,
porque será que eu sentia que uma parte de mim – mesmo que pequena – havia sido
apagada. Eu me sentia desvalorizada. Aí tive raiva, muita raiva, porque eu me
dei conta que aquela merda de situação tinha sido uma típica situação de
machismo.
Algumas pessoas, depois
que começamos a militar, ler e nos formar sobre o mundo, o machismo e o
feminismo, tendem a dizer pra gente com bastante frequência que nós, feministas
revolucionárias, vemos machismo em tudo e que isso é muito chato. Confesso que
isso mexeu comigo a ponto de fazer com que eu me questionasse sobre o meu
feminismo. Mas aí eu concluí uma coisa tão óbvia que, de fato, nós só não vemos
porque estamos vendo muito bem! EXISTE machismo em tudo. É absurdamente impressionante
a forma como essa opressão está naturalizada na nossa sociedade e em cada indivíduo
que a compõe. É impressionante como para os homens é TÃO fácil ocupar suas
posições de privilégio e seguir massacrando mulheres cotidianamente para
mantê-la, de forma aceitável socialmente.
Eu fiquei pensando: em
que tipo de sociedade é possível que uma pessoa se sinta culpada por ter
interrompido uma transa porque NÃO QUERIA TRANSAR? E se essa afirmação é
verdadeira, o contrário também é: quantas vezes eu já não transei com um cara
porque havia aceitado ir a um encontro, conversado, socializado e, portanto,
era minha obrigação ir pra cama com ele? Quantas vezes eu já me permiti ser
humilhada das formas mais sutis – a indiferença, a falta de reciprocidade, a
falta de compromisso, a falta de respeito, a falta de valorização, as piadinhas
sem graça – porque eu enxergava que uma vez passado o momento eu poderia
esquecê-lo e seguir em frente, “ignorando e sendo superior ao cara e à situação”?
E quais as consequências desse machismo para nós?
Pergunto isso porque há
mais ou menos um ano eu acreditava cegamente ter conquistado uma suposta liberdade
sexual que eu nunca tinha conhecido. Não que eu ache que de alguns anos pra cá
eu não tenha evoluído muito (porque eu acho que evoluí), mas eu percebi que,
dentro da concepção de relação sexual e relação interpessoal que eu defendo e
acredito, não é possível conquistar liberdade sexual/individual sozinha. Eu não
posso me sentir superior porque aprendi durante a vida inteira “ignorar” e
porque aprendi com uma parte do feminismo que a mulher tem direito a ter prazer
sexual, é dona do seu corpo, pode trepar no primeiro encontro e todo o resto
que vem acoplado a isso a ponto do machismo dessas relações não me atingir. A
questão é que nossas relações interpessoais JÁ estão contaminadas pelo machismo
(e aqui eu estou tomando majoritariamente como exemplo as relações que eu
estabeleço: heterossexuais, com homens). Esses homens são privilegiados e serão
machistas com certeza, não importa o quanto eu tente me munir do meu feminismo.
É bem possível que grande parte dessas relações acabem por destruir um
pedacinho meu (e seu, e nosso) a cada vez, a cada nova relação, mitigando nossa
confiança, nos fazendo questionar nossa sanidade (“será que eu estou ficando
louca?”), nos fazendo engolir essa sujeira machista e opressora, nos
silenciando.
E isso, eu concluí, é
desesperador. Me parece que não importa o que um homem diga em seu discurso
(sou aliado, sou de esquerda, sou feminista, sou de direita, sou machista
mesmo) estão ambos do mesmo lado quando chegamos para eles, a partir de toda
nossa coragem e dizemos: “ei, isso que você fez foi uma bosta e me fez mal”. Ou
mesmo quando não temos a coragem de dizer o que queremos dizer, porque foi
assim que aprendemos, e voltamos pra casa pensando “ei, isso foi uma bosta, e
você pode continuar sendo você mesmo que não tem problema, pode continuar
oprimindo todo mundo por ai que eu vou entrar um pouco mais no meu casulo”.
Eu não acho que homens
não podem ser aliados. Eu acho que eles DEVEM ser aliados. Eu acho que nós
temos que educá-los e ensiná-los porque eu acho que eles também se
beneficiariam do feminismo de formas até impensáveis. Mas eu também acho que as
mulheres precisam urgentemente aprender a não serem mais vítimas, não serem
mais submissas – e isso tem que vir desde lá de criança, desde lá da escola
onde há tanto “bullying” (o nome capitalista das opressões) – e tem que
continuar pra sempre, dentro dos movimentos de esquerda, dentro das relações de
amizade, de namoro, de camaradagem. O movimento feminista tem que fortalecer
mulheres, como sujeitos ativos de sua vida e de sua luta – e eu não to falando desse
empoderamento individual que tanto tem se pregado, mas um empoderamento
revolucionário. E eu sei como isso é difícil...
... E até lá, quanto
vamos perder, dia após dia, de nós mesmas, para o machismo? Quanto de nossa
resistência, força e confiança vai ser minado depois de cada ato, ainda que
efêmero e sutil, de machismo?