A militância da formiguinha: sobre amar e odiar o próprio corpo

Só ontem tirei umas 20 fotos minhas, basicamente para mim mesma. Fiquei pensando depois que essa prática narcisista não deve ser boa, até que hoje li um texto de uma mulher feminista que afirma não conseguir sentir amor pelo próprio corpo e o quanto isso suscitou nela algumas tristezas e contradições com o fato de se reivindicar feminista. 

Eu não sei bem em qual momento comecei a me importar mais profundamente com a pauta feminista que discute o "empoderamento" de um ponto de vista subjetivo: a força da mulher, o ser guerreiras (lobas) e o que eu acho mais importante, como consequência de tudo isso, o tornar-se um sujeito político: com voz, com vontades, com opinião. Comecei a entender, a partir das minhas vivências e das minhas amigas e conhecidas, que o processo de descobrimento do próprio corpo e das vontades e questões individuais subjetivas fazia com que as mulheres, pautadas também pela "dissipação" do discurso feminista em suas mais variadas vertentes, começassem a trocar narrativas e reflexões intensas e riquíssimas entre si, e isso tem consequências práticas e também políticas muito importante.

Com isso não estou dizendo que acho que o processo de construção de uma "identidade feminista", se é que isso realmente existe, ou até melhor, de uma prática subjetiva pautada pela concepção feminista de mundo é um mar de rosas e só avança progressivamente - no sentido de que para ser MAIS feminista é preciso estar 100% em paz e amor com o próprio corpo e a aparência. Acho, na verdade, que o feminismo ainda que guiado por algumas "premissas" básicas que lhe dá um certo caldo inicial diz mais respeito às possibilidades de desconstrução da onde tiramos alguns elementos para pensar e refletir sobre o que queremos colocar no lugar. Em outras palavras, estamos falando de uma ideologia política que vai de encontro (e com intenção de destruir) diversos elementos estruturais e ideológicos da nossa sociedade - e enquanto sujeitos sociais que vivem cotidianamente essa sociedade estaremos sempre sofrendo com suas pressões e questões. O ser feminista, nesse sentido, envolve uma militância diária e incessante, militância que envolve a reflexão interpessoal nossa (com nós mesmas) e a troca com as pessoas ao nosso redor. 

Não tendo "receita", principalmente diante do pluralismo político e cultural em que vivemos (e que é ótimo!), a militância feminista acaba sendo uma experiência de luta e atuação que questiona, duvida, contrapõe - mas que muitas vezes não consegue ir além disso, por diversas questões objetivas que podem lhe escapar. As mulheres feministas, de carne e osso e sujeitos políticos da sociedade (ainda que de forma incompleta) sentem as opressões que as sufocam de forma cotidiana e, muitas vezes, acabam por "ceder" por essas pressões, cambalear diante das exigências e padrões que lhe são impostos, se submetem a relacionamentos abusivos, mesmo sabendo que são abusivos, procuram emagrecer e ficam sem comer, mesmo sabendo que não precisam emagrecer, pois estão saudáveis daquele jeito, querem ter um cabelo liso, nariz fino e olho claro, e assim por diante. Não é por isso que essas mesmas mulheres são menos feministas - a luta interna contra esses padrões é bastante ardilosa, e muitas vezes sentimos contradições mesmo entre aquilo que falamos com aquilo que sentimos. 

Eu não acho que as contradições são, necessariamente, ruins. Não as enxergo como um enrosco ou um limitador da militância e ação política, inclusive no feminismo. Acho que precisamos, sim, conhecê-las. colocá-las para fora. Criar espaços onde podemos dizer aquilo que sentimos, entender os problemas e procurar formas de "consertá-los". Desconstruir um padrão de beleza e de corpo construído de forma tão boa, tendo a mídia como poderosa aliada, não é uma tarefa fácil. Desconstruir as concepções e referenciais de beleza que carregamos e que impomos a nós mesmas e às outras mulheres tampouco é fácil. São processos e reflexões individuais e também coletivas que demandam muita energia e muito sofrimento, inclusive. 

Eu consigo falar com certeza que depois que tive contato com as reflexões feministas me transformei numa mulher muito mais poderosa assim como também sofri muito mais, durante todas as minhas relações, todas as minhas reflexões sobre meu corpo e ser aceita socialmente e assim por diante. A minha experiência enquanto mulher, na infância e na juventude, foi marcada por uma série de traumas por gozações com a minha aparência e jeito de ser que por muito tempo (e ainda hoje, muito!) eu constantemente me colocava apenas para baixo, num mundo onde eu jamais seria capaz de vencer em alguma coisa. Isso em resumo. E essa experiência, tenho certeza, é a mesma que a da grande maioria das mulheres que, dadas as diferenças de recortes de opressões e questões, também viveram. Acho que nesse sentido conclui que as pautas e reflexões feministas servem (e devem servir) como uma espécie de "auto ajuda", não no sentido tosco do que essa palavra pode representar, mas no sentido de entendermos quem somos e que tudo bem ser assim e que há um monte de problemas que geram esses nossos íntimos problemas que a gente tem que olhar e combater - e fazemos isso numa relação dialética entre pensar em nós mesmas, nossas questões e nosso descobrimento enquanto mulheres e sujeitos políticos plenos (pq não?) e atuando no mundo conjuntamente com um série de outras pautas que são indispensáveis à realização de uma sociedade feminista e "plena".

Nesse sentido eu consigo entender a palavra empoderamento. Acompanho muitas mulheres, amigas e conhecidas, que relatam suas experiências e hoje se sentem muito mais fortalecidas para se colocarem nos espaços, reivindicarem seus direitos, contestarem, terem uma vida sexual e amorosa melhor (não vou entrar no mérito da libertação sexual, que não acho ser completamente possível, mas acho que o processo de auto conhecimento do corpo e dos seus prazeres, algo que o feminismo também traz como discussão, é essencial para entendermos como termos prazeres e ao termos relações, nossos limites e os momentos em que estamos sendo pressionadas/violentadas) - em suma, vejo que as mulheres tem conseguido trazer ao centro do debate (e para todas as mulheres, de todas as classes) questões importantíssimas que abrem possibilidades de questionamento (e diálogo, como também embate e violência) com outros setores da sociedade. 

Ao questionarmos os padrões que são impostos pelo machismo às mulheres, abre-se a possibilidade de questionar diversas outras formas de controle e dominação impostas aos grupos que chamamos minorias políticas, além de trazer a possibilidade da pluralidade do que é ser mulher ou do que é o feminismo: não falamos mais de uma mulher, há muitas mulheres - com diversas pautas que se interseccionam ou são específicas - e essa pluralidade é uma das principais formas de se criar empatia, indispensável à qualquer lutar revolucionária séria. São coisas que parecem pequenas, e pontuais, mas acho que tendo a perceber como cada vez mais indispensáveis à construção de um pensamento coletivo que se proponha combater a forma de vida que vivemos hoje, na nossa sociedade. A discussão com o corpo, forma material que assumimos e por onde nos expressamos, nos manifestamos, se faz fundamental aqui. Diz-se: sim, eu sou uma mulher gorda que ama o próprio corpo e se sente bem assim, eu tenho um monte de outras coisas pra falar e eu vou falar, e você vai me ouvir. As pressões tornam-se reais, a violência produzida como recusa ao discurso feminista abre espaço para disputas importantes de ideias - e conquistas, e a organização desses sujeitos políticos que concordam com o feminismo será fundamental para resistir nos momentos de maiores ataques às minorias. Tudo isso só é possível de ser enfrentado e construído se a militância feminista ajuda as mulheres a se verem e se sentirem como sujeitos políticos plenos, não apenas vítima da violência machista da sociedade, mas agora na posição de resistência e inclusive ataque a esse sistema que a oprime. Em suma, a militância é contraditória, porque em diversos momentos estaremos fragilizadas e duvidaremos da nossa própria capacidade, odiaremos nosso corpo, nos sentiremos incapazes. E eu acho que tudo bem sentir isso, porque nenhum militante política que nade contra toda essa maré é 100% perfeito e agirá com perfeição o tempo todo - a unica coisa que temos que garantir a nós mesmas é que mesmo assim não vamos desistir: vamos continuar lendo e estudando, discutindo e debatendo, vivendo experiências e refletindo sobre elas e desconstruindo esses valores bizarros que organizam nosso mundo. 

Acho, por fim, que é importante falar sobre isso. É importante mostrar às mulheres ao seu redor que elas são maravilhosas, por diversas razões, e que isso de ficar se cobrando um padrão de corpo e de beleza só atrasa nossa vida. As vezes, vamos atrasar nossa vida, é normal. Mas ai lembramos novamente dos nossos mantras, chamamos as amigas, nos "policiamos", nos fortalecemos. Estamos criando um mundo no qual nós acreditamos, que sabemos que nega uma série de questões daqui, mas que não sabemos muitas coisas, que seguimos discutindo e construindo, e que não da pra parar agora. 

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