“O plano é esse: nunca ficar doente”. Simplesmente assistam Eu, Daniel Blake.
Durante dois
anos trabalhei no setor de atendimento da defensoria pública da união, onde os
defensores contestavam, na justiça, as decisões negativas do INSS relacionadas
aos pedidos de aposentadoria, pensões e auxílio doença – todos direitos previdenciários
garantidos aos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. Foram dois anos
presenciando as mais confusas, tristes e cruéis histórias de vida que eu já vi.
As pessoas que chegavam até nós já haviam passado pelas mais diversas formas de
violência institucional gerada pelo Estado. Sim, pelo Estado. Começa na
necessidade de saber utilizar um computador e a internet – que pode parecer
engraçado para uma geração inteira que praticamente nasceu mexendo com isso,
mas que é desesperador para quem não consegue entender as interações
máquina/gente.
Diversas vezes eu e meus colegas realizamos os procedimentos “online”
para alguém que não tinha condição nenhuma de fazê-los. E isso, longe de ser
engraçado, é muito triste. Perdi a conta de quantas vezes expliquei os
procedimentos para alguém e tive a certeza que ao passar da porta pra fora da
DPU aquela pessoa não conseguiria realizar os “passo a passo” para acessar seus
direitos. Imaginava quantas pessoas acabavam desistindo no meio do caminho. Os
prazos de resposta também sempre demorados, onde dias corriam sem que aquelas
pessoas ali sentadas na minha frente estivessem recebendo um centavo de
benefício: você tem que aguardar o resultado da perícia. Você tem que aguardar
a decisão do juiz. Você não tem dinheiro pra comer, literalmente. E a frase,
dolorida, que eu precisava falar inúmeras vezes: Infelizmente, nós já fizemos
tudo possível, não podemos fazer mais nada. Perdi a conta de quantas vezes tive
que proferir essa frase, na cruel realidade de não poder mesmo fazer nada e, ao
mesmo tempo, de sequer conseguir entender o real impacto que ouvi-la causava na
pessoa sentada diante de mim. Pouco a pouco eu também me distanciava daquela
pessoa, o abismo social que se abria entre nós.
Inúmeras vezes
peguei documentos médicos na mão que diziam com todas as letras, em claro
idioma, que a pessoa NÃO PODIA TRABALHAR – porque se ela trabalhasse ela
estaria prejudicando a si mesma e agravaria sua condição de saúde e mesmo assim
a resposta do perito do INSS, em cima desses documentos, era dizer que aquela
pessoa estava APTA: não comprovou a incapacidade laborativa. Ou a resposta do
juiz que concluía a mesma coisa: essa pessoa deve voltar a trabalhar. E todas
as vezes em que meu trabalho envolvia ler uma sentença dessas pude ver o rosto
de desespero e desamparo de dezenas de homens e mulheres, de diversas idades,
incrédulos e surpresos em perceber que, na realidade, a seguridade social e
aquele ideal de direitos garantidos estava mais inalcançável que a
possibilidade de se tornar rico trabalhando. Era o oposto: morre-se
trabalhando. Eu pensava: espero que eu nunca adoeça, espero que eu nunca
precise do INSS para sobreviver. O desespero, provocado pela burocracia
estatal, moedora de pessoas, aprofundava o adoecimento daquelas pessoas, e eu apenas
podia dizer: eu sinto muito, sr. Eu sinto muito, sra. Era angustiante. Pensava:
se eu carrego essa angústia no peito imagina essa pessoa?
Ser um
trabalhador ou uma trabalhadora, parte das camadas mais baixas da classe
operária, necessariamente envolve ter um plano, irreal, de nunca adoecer. Você
trabalha sua vida toda – atendi muitas pessoas que trabalhavam desde crianças:
13, 14, 15 anos... E que aos 60, 70, ainda trabalhando, não conseguiam usufruir
de todo esse tempo de trabalho, em forma de benefícios previdenciários que de
fato lhes pertencia! E não era a minoria, não. Era muita gente. Muita gente com
benefício negado, muita gente me dizendo desesperadamente que preferia poder
trabalhar a passar pela humilhação da nossa previdência. O plano é trabalhar e
morrer – e de certa forma parece que, às vezes, é isso que o sistema quer e
prefere.
Segurei
mãos, dividi lágrimas, aguentei grosserias que sabia que não eram dirigidas
exatamente a mim – na raiva, na angústia, no desespero nós perdemos a cabeça.
Chorei escondida no banheiro, me senti impotente, tive vontade de explodir o mundo.
Dezenas e dezenas de “Daniels Blakes” passaram por mim. Dezenas de pessoas que
não conseguiram seus direitos, que provavelmente precisaram voltar a trabalhar,
que tinham seus benefícios constantemente ameaçados, que sentiam a pressão não
só da sua condição debilitada de saúde, mas também de um Estado que lhes
pressiona a voltarem a serem máquinas, descartáveis, que geram valor – mas que
em si mesmas são constantemente desvalorizadas e rebaixadas em suas condições.
Esquece-se que estamos falando de pessoas, de gente. É a desumanização
completa.
Esse filme
me foi tão real que chorei do começo ao fim. Dividi a sala de cinema com uma
pessoa em particular que ria de tudo. Eu não ri. Não achei graça em assistir a
reprodução do cotidiano de milhares de pessoas no nosso país e em tantos
outros. É um filme brutal, dilacerador. Necessário para entendermos o que é a
Seguridade Social – e como ela pode ficar ainda pior, e como ela já é um lixo. Foi
uma puta aula, uma aula que já tive durante dois anos, e que tanto me ensinou
sobre o que é a nossa realidade. Pelo trabalho se explora, se extrai tudo
quanto é possível do trabalhador, inclusive sua saúde e sua paz de espírito. Inclusive
sua vida. O Estado termina de fazer o trabalho – uma máquina de moer gente.
Essa já é nossa realidade e mesmo que você não seja um Daniel Blake hoje, nada
te garante que você não pode ser um amanhã.