Notas sobre um relacionamento abusivo

Sempre começava como uma espécie de comichão na barriga, uns arrepios indo e vindo e de repente um buraco que vai se abrindo. Não é possível se concentrar. Há um tempo atrás, diante de um daqueles momentos em que se olha para qualquer lado e a única possibilidade plausível, em busca de uma felicidade e dignidade razoável, era sair, procurou conhecer a história de tantas outras mulheres que relataram a vivência de algo assim. Precisou reconhecer que, primeiro, era preciso entender o que era o abuso, em cada uma das situações. Como se manifestava e como a fazia se sentir. Depois, era preciso reconhecer que já julgou muitas das mulheres a quem recorreu, saibam elas ou não, para conseguir ajuda. Pensava obter nelas as respostas de como eliminar o abuso, como fazer para quando tomava a decisão em continuar ali, sentir que havia motivo. 

É preciso agradecer a essas mulheres. Sem elas, teria sido mais difícil. Mas essa foi uma digressão. Certa vez, quando resolveu procurá-las, se alimentou de todos os relatos e experiências e aprendizados possíveis, concluindo que a forma como era possível romper vícios - algo que sentia presente na sua vida - e eliminar situações de abuso, era terminando o relacionamento. As experiências da maioria das mulheres lhes diziam que por mais que parecesse que não se sobreviveria, por mais que o amor fosse grande, verdadeiro e absoluto... Era possível viver, claro que era. Os relatos também lhe confirmaram algo que na prática já vinha reconhecendo: há infinitas formas de se cometer um abuso e, portanto, há infinitas formas de se ver e sentir violentada. Um dia, chamou de humilhante um ato seu tomado em meio ao furacão, e lhe foi chamado a atenção: humilhada ou violentada? 

Nesse intenso processo e troca, que lhe custou muitas reflexões, uma cabeça em chamas e autoreflexão; que lhe obrigou a ouvir coisas que não queria e que não alimentavam suas percepções e visões, e precisou ponderar e ponderar e ponderar, sozinha, na solitária tarefa que é construir um amor  sem hierarquia. Queria amar como prática de liberdade, mas sentia-se insegura e sentia ciúmes e não sabia como fazer. As vezes a realidade era impossível de entender, e não conseguia sequer praticar alguma forma de empatia e alteridade. As vezes não há disposição para mudanças. E isso, bem, isso os homens que o digam. 

E eles dizem e dizem que querem, isso ela via nos relatos, nas histórias. Eles se arrependiam, amavam, se desculpavam tanto quanto as mulheres. Mas eles tinham alguma coisa a mais... Sempre. Alguma forma de poder, parecia, que fazia com que seus erros fossem menos relevantes, seus problemas mais fáceis de lidar, seus tempos e disponibilidades mais preciosos, suas liberdades mais dignas de proteção, suas opiniões e vontades algo a contar um pouquinho a mais. Ela também sabia, e ouvia isso e ouviu isso, que não fosse por elas e sua inteligente (as mulheres), esses homens não poderiam ser melhores. Você me faz uma pessoa melhor - e o quanto isso enchia peito, dela e dessas mulheres, de orgulho. Eu, através da minha prática, torno alguém melhor. Eu QUERO isso. E, assim, quando percebia, isso e tantas outras coisas, formas de ser/de agir lhe traziam para perto, mais perto, tão perto... Isso lhe incomodava. Nela, em sua postura: algo em você que o outro sabe que faz você se doar (sim, doar) a algo. Mais incógnitas, porém... Mas parecia que havia em todas as mulheres, e nela, a transparência da subjugação e, ao mesmo tempo, a falta de vontade ou disposição em quebrar com isso - por tanto que lhes custava: refletir, sofrer, se expor, lidar. Longe de julgá-las, conseguia compreendê-las agora, pois se reconhecia enquanto tal. E essa falta de vontade não era uma acomodação barata, autodestrutiva que era visto enquanto tal. Era a doação, doar-se, propor-se verdadeiramente à troca.

Não sabia muitas vezes da onde vinha e de que forma, mas sabia como se sentia e sabia que isso era errado. Não era pra ser assim, vivido ou sentido. Mas sabia também: não era idiota. Não se apaixonou ou se entregou (e entregava) para alguém que não lhe fazia bem. Havia os sorrisos e risadas, os planos, os dias bons, os dias em que chegava a flutuar de felicidade, de tão leve. De tão leve que aquilo era e poderia ser, a todo momento. Então, quando reconhecia isso, e quando vivenciava o outro lado - aquele em que fechava o tempo, passava pelo ciclo de sofrer, sentir dor e raiva e tristeza, angustiar-se; reconhecer aquilo que era seu, no meio disso tudo, e refletir sobre porquê se sentia assim; encontrar aquilo que não lhe cabia, que era dele - e tentar relacionar com a história e a construção de até ali. Padrões existem, sempre. Todas as mulheres lhe disseram isso. Lhe disseram também algo importante, que ela ponderava sempre que estava perto de todas as saídas: é muito bom, apesar de quando ser ruim ser muito ruim. As pessoas não são uma coisa só, mas são sempre a mesma pessoa. Tirando aquelas que tem algum transtorno de personalidade, nós somos múltiplas coisas e pensamentos e sentimentos, mas enquanto ser temos responsabilidade sobre todos eles. Os momentos bons e ruins eram, assim, protagonizados pela mesma pessoa: ele. E ele sabia disso. 

Não é um problema saber disso. É um problema não assumir as responsabilidades inclusive por tornar-se uma pessoa melhor. Dispor-se a mudar e não mudar verdadeiramente. Isso lhe deixava angustiada, mas uma angústia social. Seria impossível quebrar com padrões de privilégios em pessoas já formadas? Como isso a situava na realidade? Não condizia com o que ela interpretava que era a vida em sociedade, mas ao mesmo tempo ela via que parecia impossível. Sentia que era impossível. Não era possível quebrar as hierarquias das relações de gênero? Não seria possível construir um amor não individualista, desprovido da noção de propriedade? Não seria possível viver um relacionamento livre da intolerância aos problemas, aberto ao diálogo, munido de transparência, confiança, conforto. O que era uma relação afetiva, afinal? O que era pra ela, o que era pra ele? Por que permanecia o sentimento de distância entre eles, depois de tempestades e tensões pelas quais passavam? 

O ponto que mais lhe doía, e talvez lhe impedisse de entender como, cada vez que se encontrava em encruzilhadas e dilemas afetivos, ao invés de recuar ela se embrenhava mais e mais naquilo. Como, ou por que? Ela sabia porque, era uma resposta simples. Gostava dele, gostava muito. Sabia também das suas limitações, a fragilidade em que encontrava seu ser. E sabia que sobreviveria sem aquilo, que não era essa (e ainda bem sabia disso) a questão. I will survive, Meredith Grey e Frances Ha, entre tantas outras mulheres já nos ensinaram isso dividindo, ainda bem, suas histórias. Sabia que era, portanto, uma questão de entrega - e quão doloroso perceber, que sabia que estava se colocando ali. Embora, evidente, não há qualquer questão moral aqui. Não é saber se qual seria pior, afinal, estamos aqui para endossar o que já havia visto: nós não podemos ser culpadas por uma violência que não cometemos contra nós mesmas, embora não podemos igualmente nos esquecer de que somos as únicas responsáveis pela rebeldia e luta a qual nos propomos, e por não aceitar que digam que somos. Isso é lindo, pensava. É lindo, mas me deixa um espinho gigante no peito ainda, porque a teoria é essa e a prática não. 

O que era preciso, que lhe dissessem o que fazer? Certamente não. Já lhe tinham dito, e ela também já sabia. Mas fez essa escolha e parecia querer lidar com esse espinho até que ele pudesse finalmente sair, e a cicatrização fosse com o tempo, a paciência, o cuidado. Era possível, claro, mas não podia sentir-se embarcando sozinha e era assim que se sentia. Mas dizia: vou, parece que ele está vindo também. E ele dizia: vou, estou indo. E o amor era o combustível principal, mais nada. Eram essas horas que valiam a pena, talvez? As grandes ressacas, aquela calmaria aconchegante, profunda, carnal que vinham depois das crises. Quando ela chegava na beirada do penhasco ali mesmo, diante dele, e dizia com todas as letras: eu não quero mais sofrer assim. Não é sobre nosso amor, entende? É sobre mim. E nessas horas ele lhe estendia a mão carinhosamente e dizia: eu entendo e também quero isso. E era assim então que ficavam as coisas. Até não ser mais.

E as vezes reconhecia, não eram porque ela tornava um pouco mais difícil tudo, e era por isso que pensava e pensava e pensava, com a centralidade que aquela relação adquirira em sua vida, pensava formas de melhorar. De ser ela uma pessoa melhor, de construir algo em que acreditava, no mundo e com alguém, de poder refletir sobre tantas coisas da vida, política, valores, que por ali passavam. De ver alguém acompanhá-la, crescer com ela, lhe incentivar e permitir crescer também, em alguns momentos. Bem, era tão emaranhado com o é esse relato. Emaranhado, porque eram tantos encontros e choques de sentimentos e de achar isso e depois achar aquilo, e de tomar coragem para isso, e depois se arrepender daquilo, e perceber algo, depois de achar que isso era impossível. Vivia, assim, esse tumulto. Essa multidão na cabeça: de pessoas e suas histórias; de amigos e seus conselhos e visões; dele e suas palavras ditas escritas e atos e comportamentos; dela e suas palavras pensadas ditas escritas e atos e comportamentos. De todas as outras coisas em sua cabeça e vida que estavam mais ou menos espalhadas pelo quarto, aqui ali e aqui, bagunçadas, tudo aquilo... 

Sabia o quanto lhe custava as vezes engolir todos aqueles sentimentos, após lidar com eles sozinha, pois precisava manter tudo bem, porque estava tudo bem - ele tinha certeza que sim. E via que talvez em partes ele não sabia mesmo, de verdade: o que fazia, como fazia, por que fazia ou, pior, porque aquilo era violento de alguma forma, errado... E se as vezes demonstrava disposição em, ao menos, escutar sobre; as vezes era uma muralha de ignorância, dureza e rispidez. Como se tratava  de uma caixa de surpresas, como se tratava de desgastes que por vezes tomavam proporções maiores do que deveria, então ela calculava os riscos, as possibilidades. E as vezes engolia, era macia. Sorria complacente, embora por dentro ainda sofresse. As vezes já não conseguia mesmo chorar. Eram muitas formas pequeninas formas de violência. Esmiuçadas, cada uma dizia um pouco sobre ele, sobre ela, sobre aquilo... Mas ainda não influenciavam sobre o querer continuar ou não. Esse era outro domínio, distante das reflexões, dos desabafos. 

Era isso que sentia. Quando deitou a cabeça alguns minutos no travesseiro, era isso que sentia. Não queria dividir com ninguém, porque sentiria vergonha. Disso, de quem era, de quem se permitia ser, do que lhe quebrava em tantos pedaços e ela recompunha de alguma forma. E sentia os olhos que julgavam, maliciosos, uns conscientes e outros não, típico do que era hipocrisia, intolerância. Como ela era as vezes, como ele era, como todos somos. Mas não queria submeter-se a isso, e mesmo quando pedia conselhos sentia vontade de interromper a pessoa e dizer: cala a boca, você não sabe do que eu estou falando. Eu estive aqui, e aqui, e aqui e você não. Nem eu sei do que eu estou falando. E como isso soava arrogante, pois foi quando dividiu com gente que sim, sabia, que percebeu que sim, se sabe muito e isso nos ajuda. Mas, naquela hora não queria aquilo. Queria paz, passar por cima de tudo isso e aproveitar os tempos bons, tentar construí-los. Porque era isso que queria, no fim das contas: construir os momentos bons, vivê-los, senti-los. 

Quem sabe, pensava. Quem sabe isso não se resolve de algum ou outro jeito...

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