O amor: entre o inconcluso e o mesquinho
Quando eu penso nas teorias das coisas, nas coisas ao meu redor que fazem parte da minha vida e na forma como eu as entendo, como vejo o mundo e como gostaria de vê-lo, percebo as tantas inconsistências entre aquilo que sou - e que sinto, e aquilo que penso e que gostaria de sentir. Todas elas, profundas, marcam diversos dilemas na minha trajetória, e tornam-se questões eternas a serem refletidas.
Quando sinto ciúmes afetivo, por exemplo, percebo como o amor livre muito mais uma construção, indefinida e inacabada, isto é, mais difícil do que eu imaginava, e que há muito mais em mim de conservadorismo do que eu gostaria de admitir, principalmente essa insegurança alimentada por um sentimento de propriedade. Eu entendo isso, entendo mesmo. Entendo a complexidade e a teoria das coisas que nos explicam o que é o amor na nossa sociedade: burguesa, capitalista, colonial, patriarcal. Sei de tudo isso. Consigo elaborar análises e reflexões sobre o tema, mas não consigo escapar de viver essa realidade no meu cotidiano: eu me sinto insegura, eu sinto ciúmes.
Acho que a admissão tampouco muda os fatos, e só se aprende de verdade a lidar com um sentimento/pensamento, combatendo-o caso a avaliação seja essa, se formos muito sinceros com nós mesmos e com nossos companheiros sobre aquilo que estamos sentindo, sem julgamento de valores a princípio. O sentimento de ciúmes sempre vem carregado de culpa e vergonha, pois sabemos o quão tóxico ele pode ser - e como é tênue a linha que divide um ciúmes banal de um ciúmes obsessivo e contaminador. Essa é a maior perversão do ciúmes, porque quando percebemos sua existência é quando vemos o quão danoso está sendo o ciúmes para nós: tirando sono, desconcentrando, fazendo o estômago doer, dando dores de cabeça... A forma como muitas vezes nos deixamos levar e controlar por pensamentos corrosivos sobre nós, sobre nosso companheiro... Não é só a relação que fica afetada, mas nós mesmas. As relações assimétricas contribuem muito para isso, é claro, mas precisamos sempre e sempre fazer o esforço de sair das leituras que apenas culpabilizam os homens - ou, mais do que isso, que culpabilizam alguém. o esforço deve ser no sentido de nos entendermos como capazes de executar alguma mudança nesses padrões de comportamento: ainda que sejamos vítimas muitas vezes das coisas "bizarras" que nos acontecem em relações assimétricas.
Eu quero dizer com isso é que minha maior contradição que busco responder quando escrevo algo tão íntimo e doloroso como é esse sentimento que me move agora, é entender como transformar esse sentimento real, que eu estou sentindo mesmo, e que é também muito prejudicial a mim e à minha saúde mental, bem como à minha relação... Como transformar esse sentimento em algo que me ensine a viver melhor, mais leve e mais coerente com minha ideologia de vida, de amor, de política.
É muito difícil admitirmos para nós mesmos e para nossos companheiros o que estamos sentindo diante de determinada situação.
Não sei de onde vem a insegurança. A gente tem várias, de raízes diferentes. Quando ela se materializa numa relação ela o faz através do nosso medo de perda: perdermos aquela pessoa, o que é um pouco reducionista (além de capitalista, rs) sobre o que é essa outra pessoa. Não se perde (supostamente) relações assim: as transformações e sentimentos dentro das relações ocorrem com o tempo, com a dedicação de ambas as pessoas, com os quereres, etc. Não se tem pessoas, portanto: nós nos relacionamos. Essas relações podem se transformar ao longo do tempo, acabar, começarem novas... E, durante todo esse processo, de vida, vamos também nós nos transformando, individualmente, e aprendendo onde conseguimos avançar, onde temos dificuldades... Ao mesmo tempo em que percebemos também nossas proprias vulnerabilidades. Conhecemos nossos limites.
A insegurança diminui a medida em que a confiança aumenta. Confiança em si mesmo, confiança no seu parceiro, confiança naquela coisa, coletiva, a relação - que se constrói. Essa confiança tá lá no início já, mas também se reafirma no dia a dia da relação. São atitudes, palavras, linguagem de corpo, gestos. É o dito consciente mas também o que ficou nas entrelinhas, principalmente se o diálogo não for algo de rotina. Quando digo diálogo digo poder falar sobre tudo: todos os sentimentos que se sinta, dignos ou indignos, devem ser trabalhados. E isso cansa. Não acho que tudo precisa ser dito A PRIORI ao companheiro, que seja algo que só se pensa em conjunto. Acho que há momentos. As vezes precisamos nos recolher um pouco, refletir. Entender aquilo primeiro, para depois comunicá-lo da melhor forma possível, de um jeito que não vá machucar ou vá ser só vingança, competição; as vezes é preciso carregar a angústia sozinho, até que seja possível verbalizá-la bem, de forma tranquila. Mas é preciso, sempre, comunicar. Principalmente se é algo que sentimos em relação ao outro a partir de atitudes e acontecimentos exteriores. Mesmo que o sentimento seja ruim, é preciso poder falar. A confiança é isso: entender que o vínculo ali estabelecido é passível de passar por questionamentos, por situações desagradáveis tentando transformá-las em algo menos pior.
Quer dizer. Está tudo bem sentir ciúmes. Ou melhor, não está, para você mesma. Mas está, porque sabendo que sentimos algo que nos machuca e incomoda e nos causa dor, podemos tentar pensar por que sentimos, como sentimos e como fazer para se livrar disso. Não esqueço, dentro desse clichê da mensagem, um pequeno conto de Rubem Alves sobre as ostras e a fabricação de pérolas. Acho que dentro de relações afetivas, tentando lidar com o amor que me tira de uma posição subalterna, eu percebi que ostra feliz não faz pérola. Não é possível produzir algo novo, bonito, resistente... Sem estarmos nós mesmas fortalecidas e sem passar pelo gasto de tempo, energia, dedicação e reflexão que gastamos tentando entender e viver o amor. Mais do que o amor, o amor de Bell Hooks: como prática de liberdade. Como algo que acolhe, não repele. Que agrega, não segrega. Que compartilha, não individualiza. Esse amor, que contraria em todos os aspectos o que é a competição, a propriedade privada, a hierarquia, a dominação e o poder.
Um amor simétrico, livre de posse e dominação. Esse amor é difícil, muito difícil de construir na prática. Nos leva a relações abusivas. Nos leva muitas vezes à situações limites, porque quando amamos e amamos mesmo, e nos entregamos nessa troca de energia tamanha que é esse amor buscando romper esses estigmas, é porque amamos muito. Porque sabemos, na maior parte do tempo, a hora que devemos parar. Sabemos reconhecer nossos limites, enquanto mulheres, daquilo que suportamos ou não dentro de uma relação e, portanto, delimitar nossas possibilidades. Vemos isso e planejamos, porque também é assim que aprendemos sobre o amor: como compartilhar, como doar-se e estar disponível. Como cuidar. Não vejo mal nisso, acho que essa (e tantas outras) é uma ótima justificativa para a dominação sexual, o controle do corpo da mulher. A capacidade de amor da mulher - enquanto ser social e construção cultural - é infinitamente maior do que a do homem. A ideologia feminista, movimento de emancipação das mulheres já carrega consigo inúmeros aspectos de outras ideologias indispensáveis à luta anticapitalista, é uma ideologia revolucionária. Aprendendo assim, somos muito mais dispostas ao diálogo, ao ensinar, ao escutar. Temos paciência pra isso, mesmo quando pessoalmente já não temos, porque precisamos. Repetimos para nós mesmas: respira fundo, você é capaz disso. Lidar com o outro.
As vezes, uma voz bem fraca sopra no nosso ouvido para sairmos dessa, irmos viver nossa vida, pensar mais em nós mesmas, nos colocar em primeiro lugar. É muito cansativo isso. Muito. Em boa parte do tempo quando penso em seguir esse conselho me sinto muito aliviada, do ponto de vista do gasto emocional que tenho. Mas fico muito triste, do ponto de vista do sentimento que também tenho, me transbordando. Mas esse é o dilema que carrego, eu, comigo. O que quero dizer aqui é sobre poder lidar com tantos sentimentos ruins dentro das relações, de forma que isso não se torne tão pesado como geralmente acontece. Não sei bem como. Penso que a melhor forma disso acontecer é estarmos, primeiro, realmente entregues àquela relação, àquela pessoa. Se não há um comprometimento com aquilo, no sentido de cultivar o sentimento e a relação para que ela permaneça existindo, então não tem como haver forma saudável de lidar com as contradições.
Estar disposto significa, (in)felizmente, a disponibilidade de tratar sobre a relação sempre que necessário ou solicitado. A relação deve poder ser objeto de reflexão da relação, junto com tantos outros aprendizados coletivos, pois essa reflexão envolve também muitos ooutros aspectos das nossas proprias dimensões individuais e também como nos colocamos em outras situações sociais. Crescer dentro da relação é crescer individualmente também - e isso só acontece com muito diálogo, disponibilidade de aprendizagem: escutar, ler, falar. Refletir. Rever, honestamente, os privilégios. Poder pedir desculpa e, mais do que isso, pedir desculpa como forma de evitar a qualquer custo aquele erro e não já pensando que vai cometê-lo de novo. Des-essencializar nossas características, principalmente aquelas que são defeitos (e que as vezes são dsculpa também para não sairmos de posição de conforto, o que nos incomodaria).
As vezes é mais fácil se retirar também. Saber reconhecer os próprios limites de ação, o quanto somos capazes de lidar com um sentimento/contradição ou até o quanto queremos. Acho que precisamos aprender a ser mais transparentes em relação a isso - e também mais comprometidas com nós mesmas, as vezes acima da relação. É que, uma relação precisa ser muito equilibrada para que valha a pena essa dedicação toda - e as vezes ela não é.Saber reconhecer isso, por mais doloroso que seja, é necessário para colocar na balança da nossa disposição de quanto topamos nos sacrificar, de quanto vamos nos doar. É uma conta, não tem como não ser. Cada vez que nos deparamos com situações de tensão, intolerância ou violência dentro da nossa relação é uma vez mais que nos perguntaremos ou repetiremos em meio às lagrimas: o que eu fiz para merecer isso? Eu vou acabar com isso de vez, eu não mereço ser tratada assim. Quando assumimos a coragem de nos colocar nesses termos, sabemos também o quanto nos dói, porque muitas vezes quando pensamos em nos retirar não estamos atendendo aquilo que desejamos: mesmo em meio ao caos, o amor também existe. O carinho. Então, nessas horas em que sentimos tamanha incompatibilidade entre aquilo que pensávamos estar construindo e aquilo que estamos sentindo ali no momento, e vendo desmoronar... Nessas horas a dor transborda no peito, porque gostamos daquela pessoa, estamos dispostas. Mas ela também precisa estar.
Em relações assimétricas, as pessoas que detém mais poder social são aquelas que controlam a relação, em geral. Digo em geral porque sei que os opressores também sofrem com a própria violência de sua condição de existência - são frutos dessa violência. Os homens muitas vezes submetem às mulheres através de formas de violência e opressão sutis. Querer abrir mão de um privilégio, verdadeiramente, é algo muito trabalhoso para um homem. Mas sabemos que não é impossível, sabemos porque nos propomos a fazer isso todos os dias quando optamos por estar em uma relação. Sabemos da desconstrução, como ela é difícil, mas estamos dispostos, quase sempre. As vezes, talvez as vezes, tudo bem não estar. Reconhecer os limites da sua capacidade ao pensar "agora eu não consigo fazer isso" é ter a maturidade para se distanciar, olhar com outros olhos, de outra perspectiva. Quem sabe, depois, voltar e dizer: ok, vamos tentar agora. Se for essa a vontade...
As vezes nos retiramos, as vezes mergulhamos mais fundo. O termômetro são nossos próprios sentimentos - e estômago - diante das situações e relações em que nos encontramos. A honestidade e o diálogo e a entrega plena são fundamentais para se construir uma relação, nessa sociedade, que tenta transcender os limites morais e dolorosos impostos por essa mesma sociedade. Nenhum espaço de nossas vidas deve permitir e legitimar a existência de sentimentos mesquinhos, burgueses. Não é, em contrapartida, através da simples repressão desses sentimentos, do medo, do isolamento que vamos conseguir combatê-los e ressignificá-los. Pelo contrário, é lidando com eles, falando sobre, enfrentando. É sentindo em nós mesmas, e escolhendo nos posicionar. É recuando, para depois avançar.
Escrevo agora por não poder falar. Talvez em breve eu conseguirei verbalizar isso de alguma forma, e consiga me libertar disso, desse peito preso.