É preciso suportar o próprio peso e aprender a se libertar

Nunca fui boa de iniciar textos. Normalmente eles começam a fluir lá pelo terceiro parágrafo, e acabam ficando desconexos. Acho que são as ideias, elas parecem raios voando indo e voltando, desaparecendo, aparecendo todas ao mesmo tempo. Bom, outra coisa que eu também nunca fui muito boa é lidar com meus problemas. Há um tempo atrás eu pensei ter encontrado a melhor forma de lidar com eles: negação. Substituição. Entrega. Tipo essas três palavrinhas combinadas.

Eu me apaixonei por uma pessoa que eu mal conhecia. Me apaixonei perdidamente. Minha cabeça se ocupava 90% do tempo em pensar sobre isso – eu respirava esse sentimento, eu me agonizava e sofria cada interpretação errada, cada grosseriazinha, cada dissabor. Eu precisava daquele sentimento, daquela pessoa. Só ela fazia sentido, eu projetava, eu me dedicava basicamente aquele sentimento. Meus outros problemas pareciam de certa forma muito menores, porque eu tinha aquele “amor”. Mas e eu, eu realmente estava feliz?

Não digo que eu não aproveitei o sentimento. O coração é mesmo muitíssimo engraçado. De repente, e essa palavra nunca teve um significado tão claro como naquele momento, de repente eu não queria mais ver aquela pessoa. EU não queria. EU tinha parado de sentir. Mas ela tinha acabado de começar – porque, enfim, ao contrário de mim ele soube deixar o sentimento dele evoluir normalmente, conforme me conhecia, conforme saia comigo e se envolvia num ritmo normal – enquanto eu na minha cabeça e com meus sentimentos que, sim, foram verdadeiros, evoluímos na velocidade da luz!
Agora, essa é uma reflexão de muitas partes. A primeira, foi a descoberta de que eu não sentia mais nada por ele – e a impossibilidade de lidar com isso de forma matura. Eu não conseguia terminar aquela “relação”! Quando aquilo virou uma espécie de problema para mim, eu simplesmente não consegui solucioná-lo – e ai eu entrei em negação. Seria típico, se não envolvesse outra pessoa. Foi preciso levar um fora (muitíssimo certo, por sinal) para poder lidar com aquele problema de forma consequente.

Um fora dói. Seja por ferir nosso orgulho ou nosso coração – seja quando nós damos o fora ou quando levamos ele. Um fora dói. Perder alguma coisa, algo que representava alguma coisa na nossa vida é bastante incômodo – e perder uma pessoa também. Para mim é sempre uma perda, eu nunca consigo lidar com “ficar amiga dos meus ex’s” – então a melhor forma que eu lido com isso é simplesmente apagando a pessoa da minha vida. Sempre foi assim. O afastamento completo, a anulação. A negação de alguma história tão sistematicamente até ela se tornar distante até da nossa própria vida.

O fora doeu. Terminou com um beijo triste e eu sentada na cama tentando chorar. Eu tentei, bastante. Tentei ficar triste pela situação em si – mas eu não conseguia. E comecei a achar que tinha alguma coisa errada – porque, afinal de contas, um fora dói. E assim, doía um pouco, mas não era nem perto do fim do mundo que sempre foi – e isso me incomodou, porque parecia que tinha alguma coisa errada comigo. Eu meio que me culpei tanto por não estar sentindo nada – pensei tanto no cara que, mais uma vez repentinamente, eu estava com muita saudade dele – eu precisava muito dele aqui. E eu não me resignei nem um pouco, simplesmente fui atrás dele. Tentei várias abordagens, ouvi coisas que só alimentavam essa minha saudade e a vontade de que eles fosse uma espécie de “tampa da panela” à la comédia romântica, que da certo depois de dar errado.

Até que a gente se viu. Eu abri meu coração, falei da saudade, do vazio que era não poder mais ter ele comigo em várias horas, o fim da intimidade... Ai a gente se reaproximou, voltou a se falar todos os dias – mas ai tinha alguma peça que parecia não encaixar. Começou a virar rotina, começou a virar necessidade puxar o assunto – nem que inventasse qualquer aleatoriedade. Ai eu tive a oportunidade de vê-lo de novo e eu não queria vê-lo, não queria sentar e conversar com ele, ou mesmo beijar. Não queria ouvir ele falando.

E, mais uma vez, eu não poderia lidar com aquele problema. Pelo contrário, eu procurei em outros corpos, outras pessoas, meio Charlie Brown Jr., encontrar a resolução dos meus problemas – alguém a quem me apegar, em quem mergulhar. Mas, diferente de Charlie Brown, eu procurava em outros corpos, aparentemente, encontrar a mim mesma. Eu me perguntava: O que você quer? O que você precisa fazer? O que você está sentindo? E eu respondia das formas mais clichês possíveis que minhas respostas estariam no outro – eu me ocupava constante e profundamente em lidar com os outros: outros sentimentos, outras pessoas. Com a sujeira da casa. Com a bagunça no armário. Com a mensagem não respondida. Com a impossibilidade do amor à distância ou não correspondido.

E ai eu levei duas cacetadas na cabeça. A primeira me dizia que a nóia e a obsessão são absurdamente tóxicas – e que a gente vira uma companhia muito chata quando para de se divertir e carrega nas costas todo o peso de dores inventadas e nóias, obviamente, imaginadas. O amor – essa brincadeira, sentimento, baboseira e tudo que ele pode ser – deixa de ser leve para virar uma coisa sufocante, pesada. Deixa de fazer sentido , e olha que ele já não faz sentido nenhum! Quero dizer, quando a relação ou envolvimento se transforma numa carga, numa expectativa alta, num depósito de questões mais resolvidas na esperança de qualquer mágica que não existe... Isso não é amor – e nenhuma pessoa no mundo é resposta para perguntas que, em primeiro lugar, envolvem nós com nós mesmas! Quer dizer, como eu ia resolver o problema do meu trabalho me envolvendo com a pessoa X? E o bloqueio no mestrado com a pessoa Y? Impossível!

A segunda cacetada veio em forma de 2º fora da mesma pessoa! Há-há-há! Patético, eu sei. Mas também extremamente necessário! Eu nunca tinha conhecido (mentira, talvez até tenha sim!) alguém tão egoísta como esse cara e, por incrível que pareça eu aprendi que o egoísmo dele, nesse caso, era algo muito bom!  Ele me cortou da vida dele como um perfeito ceifador: tchau, não vamos nos falar nunca mais, tenha uma boa vida. Ele me desejou uma boa vida! Isso nunca tinha acontecido comigo. Ele fez com que tudo aquilo que não estava lhe fazendo bem fosse arrancado – custe o que custar. Ele teve a coragem que eu jamais tive em colocar um ponto final numa relação que obviamente não fazia sentido – e não fazia sentido para mim também. Eu não ganhava nada com ela, no fim das contas. Me atrapalhava.

O curioso é que eu senti uma espécie de libertação – triste, eu admito que não é uma libertação que não tenha suas dores, porque tem. Mas não deixa de ser uma libertação. As vezes quando alguém abre a porta pra gente depois de muito tempo acostumados que estamos a ficar ali, a gente simplesmente hesita, sente medo. Pensa que ao passar pela porta as coisas não vão fazer sentido, a gente não vai mais conhecer o que tem ali. A gente se apega desesperadamente ao que tem ali dentro da porta. E então a gente precisa daquele empurrão e daquela sacudida – a gente precisa que alguém abra a porta e nos conduza para fora e diga “tenha uma boa vida” – pra lembrar a gente de que a gente tem, sim, uma boa vida pela frente para se apegar ao que não faz sentido.

E a gente olha com um aperto no coração e pensa “poxa, isso é tão triste, é tão triste que isso tenha acabado assim” e ai percebemos que isso é sincero e que nos faz erguer a cabeça e dizer “e agora?” e começar a pensar nas respostas que realmente respondam aquelas nossas perguntas... Começar a pensar que o amor que a gente planta e colhe durante essa caminhada pode nos servir de apoio – colorindo essa travessia terrível e sofrida que é a travessia por nós mesmos – ou pode ser um fardo que carregamos arrastando preso aos nossos pés, nos atrasando, nos impossibilitando, por diversas vezes, de seguir em frente – de crescer.

Não digo que não sofro por amor. Deve ser por isso – pelas entregas erradas, mas também pela alma inquieta – que eu me entrego tanto, que eu sofro tanto. Saramago é dono de uma frase maravilhosa sobre isso, que não poderia me descrever melhor: eu tenho um coração feito de carne – e ele sangra todos os dias, por amor, por saudade, por angústia, por medo, por tristeza... Por tudo. E em grande parte do tempo eu acho isso uma bosta – e desejo com todas as minhas forças ter um coração de pedra. E quando alguém nos diz para ter uma boa vida e nos apaga assim, isso sangra também. Mas isso também liberta, empurra pra fora. E, sangrando ou não, a gente precisa continuar.

E então, no fim das contas, quem fica? Quem sobra disso tudo? E porque é preciso, de forma tão urgente, que a gente aprenda a ser inteira – aprenda aquela lição pixada no muro sobre sermos o amor das nossas próprias vidas? Sobre a leveza – por vezes absurdamente insustentável – de sermos nós mesmos? Ainda que por alguns minutos... E agradecer, doloridos ainda, por partir e continuar caminhando, por morrer de amor e continuar vivendo, por cair e levantar e continuar lutando... Porque alguma coisa precisa fazer sentido e porque você precisa descobrir o que.  E me parece que em partes isso só é possível sozinha.


Postagens mais visitadas deste blog

"Fica bem", "Se cuida" e "tenha uma boa vida" e o significa real do "não se envolver".

Sociologia do amor: a quase-simetria possível na sinceridade

Carta de repúdio às canções da atlética da medicina da PUCCAMP.